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A força dura das formas de Nicole
* Por Gustavo Maia
Desisti quando veio a madrugada, quente e sem ventos. Vai ser a última vez: não sei quantas vezes eu me prometia isso. Também não sei há quanto tempo eu buscava Nicole nas pessoas da rua, em lugares e histórias incontáveis.
Olhei a rua por uma janela e não percebi que voltava a buscar Nicole. Era noite. Não! Ainda era tarde e chovia. Sei que chovia. Achei Nicole num rosto, a princípio inexpressivo. Esqueci que os rostos inexpressivos sempre mentem.
Descobri uma velhinha magra numa cadeira-de-rodas. Havia uma menina que a empurrava com facilidade, e a velha era feliz mesmo sem as pernas. Acho que Nicole era feliz assim, felicidade selvagem e ousada. Empurrei a velha pela calçada larga de um lugar que não sei onde. Mas a velha, com uma aparência pobre naquele semi-túmulo, me comandava. Fiquei um tempo só com ela.
Contou que a menina que a acompanhava era sua neta. Que a menina a odiava. (Vi que a felicidade da velha era amarga como a de Nicole). Que a menina era cheia de um ódio doce e perturbador, mas a única pessoa que a carregava na rua das pessoas de pernas vivas. Ainda falou dos filhos, que estavam mortos. E do marido, que a amava, mas não daquele jeito de que está faltando alguma coisa. Vi que a velha me enganava quando percebi que ela sempre era forte.
Nicole gostava mesmo era de se entregar. E eu gozava quebrando sua força e sentindo que lá dentro Nicole era frágil e domável. A neta da velha era Maria. E a velha... Velha. Maria usava um vestido curto vermelho-céu, com estrelas estampadas. Não! Eram estrelas num céu vermelho e os seios de Maria se escondiam nas estrelas.
Nicole era matéria óbvia e chocante. Dona de seus panos, que escorregavam, deslizavam possuídos, extasiados sobre o corpo livre de Nicole. Às vezes envergonhados ou dissimulados.
Dissimulada.
Eu vibrava com a forma dissimulada de Nicole. Quando ela dizia não, que agora não. Não conheço nada que lembre meu primeiro choro no corpo doído de Nicole. Criminoso, saciado, desesperado enquanto, por um segundo, Nicole esteve morta. Pulsos frios, coração parado. Os olhos bem abertos, imóveis, e os dentes ainda mordiam furiosos o lábio inferior. Então me afastei e berrei. Berrei até ver Nicole virar o rosto, mexer os dedos da mão cerrada. Levantou e foi ao banheiro, sem olhar pra mim. Fez silêncio por longos dias. O corpo todo silencioso. Apareceu bêbada numa madrugada. E usada. Fingiu que se sentia vingada e eu, que não me importava. Que gostava de mulheres usadas, e fui ainda mais violento naquela vez. Conheci uma forma de Nicole que me viciava e me destruía: a violenta Nicole.
Fomos intensos até onde podíamos. A violência quebrava aquele tédio turbulento das semanas, do tempo. Depois da violência, um intervalo de calmaria e pureza. Um aparente amor. E, se eu nunca entendi o que é o amor, a culpa é dessa Nicole. A maldição era eu não querer o amor, mostrava nos olhos exaustos e desonestos. Frios, dolorosos, verdadeiros.
Nicole contou que havia se apaixonado por meu vazio. O meu jeito de aceitar, de salvar. Mas não suportava mais abrir a porta de casa e me ver salvar. Queria que eu a ajudasse, sujasse. Que eu a amasse. Mas eu só sabia salvar. Foi a última vez que vi Nicole.
Dos olhos, estavam sérios e desarmados. Donos do verde-terra que eu chamei verde-para-sempre-Nicole. Não tive coragem de sentir, nem força, Nicole pela última vez. Só pude jurar que a amava e amava. E acho que nunca fui tão verdadeiro e tão sensato. Mas deixar Nicole ir embora foi deixar viver em mim um fantasma tenebroso, fantasma-pierrô. A forma mais viva e verdadeira de Nicole. Nicole-caravela. Nicole-mar.
* Estudante de Jornalismo da UFF
* Por Gustavo Maia
Desisti quando veio a madrugada, quente e sem ventos. Vai ser a última vez: não sei quantas vezes eu me prometia isso. Também não sei há quanto tempo eu buscava Nicole nas pessoas da rua, em lugares e histórias incontáveis.
Olhei a rua por uma janela e não percebi que voltava a buscar Nicole. Era noite. Não! Ainda era tarde e chovia. Sei que chovia. Achei Nicole num rosto, a princípio inexpressivo. Esqueci que os rostos inexpressivos sempre mentem.
Descobri uma velhinha magra numa cadeira-de-rodas. Havia uma menina que a empurrava com facilidade, e a velha era feliz mesmo sem as pernas. Acho que Nicole era feliz assim, felicidade selvagem e ousada. Empurrei a velha pela calçada larga de um lugar que não sei onde. Mas a velha, com uma aparência pobre naquele semi-túmulo, me comandava. Fiquei um tempo só com ela.
Contou que a menina que a acompanhava era sua neta. Que a menina a odiava. (Vi que a felicidade da velha era amarga como a de Nicole). Que a menina era cheia de um ódio doce e perturbador, mas a única pessoa que a carregava na rua das pessoas de pernas vivas. Ainda falou dos filhos, que estavam mortos. E do marido, que a amava, mas não daquele jeito de que está faltando alguma coisa. Vi que a velha me enganava quando percebi que ela sempre era forte.
Nicole gostava mesmo era de se entregar. E eu gozava quebrando sua força e sentindo que lá dentro Nicole era frágil e domável. A neta da velha era Maria. E a velha... Velha. Maria usava um vestido curto vermelho-céu, com estrelas estampadas. Não! Eram estrelas num céu vermelho e os seios de Maria se escondiam nas estrelas.
Nicole era matéria óbvia e chocante. Dona de seus panos, que escorregavam, deslizavam possuídos, extasiados sobre o corpo livre de Nicole. Às vezes envergonhados ou dissimulados.
Dissimulada.
Eu vibrava com a forma dissimulada de Nicole. Quando ela dizia não, que agora não. Não conheço nada que lembre meu primeiro choro no corpo doído de Nicole. Criminoso, saciado, desesperado enquanto, por um segundo, Nicole esteve morta. Pulsos frios, coração parado. Os olhos bem abertos, imóveis, e os dentes ainda mordiam furiosos o lábio inferior. Então me afastei e berrei. Berrei até ver Nicole virar o rosto, mexer os dedos da mão cerrada. Levantou e foi ao banheiro, sem olhar pra mim. Fez silêncio por longos dias. O corpo todo silencioso. Apareceu bêbada numa madrugada. E usada. Fingiu que se sentia vingada e eu, que não me importava. Que gostava de mulheres usadas, e fui ainda mais violento naquela vez. Conheci uma forma de Nicole que me viciava e me destruía: a violenta Nicole.
Fomos intensos até onde podíamos. A violência quebrava aquele tédio turbulento das semanas, do tempo. Depois da violência, um intervalo de calmaria e pureza. Um aparente amor. E, se eu nunca entendi o que é o amor, a culpa é dessa Nicole. A maldição era eu não querer o amor, mostrava nos olhos exaustos e desonestos. Frios, dolorosos, verdadeiros.
Nicole contou que havia se apaixonado por meu vazio. O meu jeito de aceitar, de salvar. Mas não suportava mais abrir a porta de casa e me ver salvar. Queria que eu a ajudasse, sujasse. Que eu a amasse. Mas eu só sabia salvar. Foi a última vez que vi Nicole.
Dos olhos, estavam sérios e desarmados. Donos do verde-terra que eu chamei verde-para-sempre-Nicole. Não tive coragem de sentir, nem força, Nicole pela última vez. Só pude jurar que a amava e amava. E acho que nunca fui tão verdadeiro e tão sensato. Mas deixar Nicole ir embora foi deixar viver em mim um fantasma tenebroso, fantasma-pierrô. A forma mais viva e verdadeira de Nicole. Nicole-caravela. Nicole-mar.
* Estudante de Jornalismo da UFF
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