Para
que servem os museus?
*
Por Mara Narciso
As
grandes perdas têm um efeito catártico, de purgação e
purificação, que vem num assombro, numa implosão, num olhar pra
dentro e que culmina numa mortificação ou reflexão profunda,
redescobertas e encontro de novos caminhos. Muitas vezes estreitos,
tortuosos, com precipícios, nos quais vão sendo construídos
guarda-corpos, e por fim, será possível, lá do topo, vislumbrar a
bela paisagem.
O
Museu Nacional do Rio de Janeiro, fundado por Dom João VI em seis de
agosto de 1818, de perfil acadêmico e científico, virou cinzas no
dia dois de setembro de 2018. Pode ser que 10% do seu acervo sejam
recuperados precariamente. Duzentos anos de História e de
preciosidades desapareceram. A consternação tomou conta das mentes
conscientes, enquanto eternas vozes discordantes garantiam sentir
alívio por não precisar gastar dinheiro com velharias inúteis,
afinal para que serve um museu senão para juntar pó, ferrugem,
traças e outros bichos? Inutilidade total, zombavam do passado os
usuários das redes sociais.
O
mundo é dual e a imbecilidade tornou-se o lado maior e mais forte
dessa dualidade. A lógica ficou subitamente invertida. Os fatos
apresentam-se com dois pontos de vista contraditórios, com grupos
que se odeiam e falam mentiras, mostrando ao lado contrário,
aparentes provas indiscutíveis. Há o bem e o mal, os durões e os
sensíveis e grupos que se organizam, num amplo espectro de
intolerância. Não existe unanimidade em nada, sem chance de se
errar pelo exagero.
Do
acervo irremediavelmente perdido constavam 20 milhões de itens de
Antropologia e História Natural, entre eles o Fóssil de Luzia, de
12 mil anos, o Meteorito de Bendegó (1888), o dinossauro
Maxakalisaurus topai, o caixão egípcio de Sha-Amun en su, múmias
egípcias e sulamericanas, Os Lusíadas em sua primeira edição, o
Documento de Assinatura da Lei Áurea, a Declaração da
Independência do Brasil, toda sorte de objetos, móveis e
vestimentas, coleção iniciada pela Família Real Brasileira.
Deixando
os para sempre desaparecidos, quantos museus você já visitou? Como
estava o grau de conservação, acomodação e segurança das peças?
Como foi seu comportamento lá? Teve o devido respeito aos
antepassados? Não chegamos aqui agora e atrasados, a agenda está
lotada por nossa própria escolha. Não temos tempo para contemplar o
passado com a devida reverência, porque temos muito a fazer. Quem
nos deixou chegar aqui? Estamos no século XXI sobre os ombros
de quem? Em cima de ações e construções dos nossos antepassados.
Estamos sobre nossa ascendência, e sem eles nosso grau de
civilização seria outro. Não somos nada sozinhos, e se podemos ter
uma vida, foi porque nossos antepassados estiveram por aqui.
Os
museus existem para preservar a História, é obvio, mas é preciso
construir no presente algo notável para virar passado. Muitos fatos
são História, mas trazem vergonha à humanidade. Há o Museu do
Holocausto. Há outros museus da vergonha. Estamos construindo o
presente de forma digna? Estamos primando pela verdade, sinceridade,
respeito, amor? Não existe lugar neste mundo para esse sentimento de
fracos? O seu presente é algo que valerá a pena contar aos seus
descendentes? Que tal ser bom? O habitual é dar uma resposta
cortante? Não deixar provocação sem resposta? Quem ganhará com
isso? Caso ganhe, será exatamente o quê? Será algo digno de estar
num museu daqui a 200 anos? Isso se o homem não se autodestruir,
negligenciando e tocando fogo na Terra como fez com o Museu Nacional
do Rio.
É
velho? É antigo? É desinteressante? Estude, aprenda, e saiba que há
museus modernos. Cazuza disse: “eu vejo o futuro repetir o passado,
eu vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para” (1988 –
Cazuza e Arnaldo Brandão – “O tempo não para”). Foi
profético, mencionando o distanciamento da repressão, porém com a
persistência de uma sociedade moralista e conservadora. Que as
novidades sejam boas, que sirvam aos museus do futuro, e que saibamos
preservar aquilo que foi tão nosso.
* Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”
Hoje, quase um mês após a tragédia, ainda é difícil aceitar o ocorrido... Abraços, Mara.
ResponderExcluirDor sem jeito.
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