Rótulos e estereótipos
Sou
visceralmente contrário à mania que determinadas pessoas têm de
apor rótulos a textos literários. Muito sujeitinho arrogante, que
arrota pretenso bom gosto, torce o nariz, por exemplo, diante de um
soneto de Olavo Bilac, de algum poema de Castro Alves ou de um Cruz e
Sousa, Augusto dos Anjos ou Álvares de Azevedo. “Sou moderno e não
gosto dessas velharias”, dizem do alto da sua empáfia, apegados à
forma de se expor uma ideia ou sentimento, sem se dar conta do
conteúdo. Se o poema for parnasiano, ou simbolista, para esses
intelectuais de algibeira não presta. Esquecem-se que essas
classificações, por “escolas”, existem, apenas, para efeito
didático, de estudo da literatura. Nenhum escritor atual está
proibido de escrever como Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa,
Augusto dos Anjos ou Álvares de Azevedo, entre outros. O diabo é
conseguir fazê-lo.
Com
esta baboseira, com esta interpretação equivocada das escolas
literárias, estão conseguindo estereotipar a literatura,
notadamente os clássicos brasileiros. Que bobagem minha gente! Se eu
quiser compor um poema que possa ser classificado como simbolista,
explorando com perícia e competência um tema original, se for
rigorosamente correto na forma de me expressar, sem qualquer erro
gramatical, sequer de acentuação ou pontuação, se for,
principalmente, claro e minhas metáforas, apesar de supercriativas,
forem altamente explicativas, ele não terá valor literário algum,
por não ser “moderno”? Para ele ser bom, precisarei violar
normas semânticas, eivar cada verso de neologismos estúpidos e ser
contraditório e obscuro? Estou fora! Isso não é literatura. Pode
ser, quando muito, exibicionismo literário.
E
por que trago isso à baila? Por causa de um incidente que ocorreu
comigo há alguns meses. Fui convidado a comparecer a uma reunião
informal (em termos, porquanto na prática era formalíssima) de
escritores, na casa de um deles, com o qual tenho muita amizade. Em
princípio, não gosto desse tipo de encontros. Eles costumam ser um
confronto de egos, uma competição de vaidades, onde cada qual quer
exibir mais ostensivamente seus supostos (e não raro reais mesmo)
dotes literários. A reunião ia bem, com cada qual expondo o que
estava produzindo na oportunidade. Éramos oito escritores. Cada um
leu um trecho dos seus novos livros, muitos já em fase de revisão.
Ao chegar a minha vez, em vez de ler um texto meu, num impulso,
declamei de memória (e nem sei explicar porque) este belo soneto de
Florbela Espanca, intitulado “Silêncio!...” e que diz:
“No
fadário que é meu, neste penar,
Noite
alta, noite escura, noite morta,
Sou
o vento que geme e quer entrar,
Sou
o vento que vai bater-te à porta…
Vivo
longe de ti, mas que me importa?
Se
eu já não vivo em mim! Ando a vaguear
Em
roda à tua casa, a procurar
Beber-te
a voz, apaixonada, absorta!
Estou
junto de ti, e não me vês…
Quantas
vezes no livro que tu lês
Meu
olhar se pousou e se perdeu!
Trago-te
como um filho nos meus braços!
E
na tua casa... Escuta!...Uns leves passos…
Silêncio,
meu Amor! Abre! Sou eu!...”
Prá
quê!!! Terminada a declamação, notei um ar de constrangimento
geral no grupo. “O que foi, não gostaram?”, perguntei, entre
perplexo e irritado, já que não tenho papas na língua e não sou
muito chegado a salamaleques, a pretexto de ser “bem educado”. Um
dos escritores (cujos livros soem encalhar um a um nas livrarias e
todos foram bancados do próprio bolso) disse, melifluamente, no tom
mais hipócrita possível, mas com a língua destilando veneno: “Por
que você não apresenta algo mais moderno (e citou um poeta francês
da moda, cuja obra não conheço e cujo nome não me lembro).
Florbela Espanca? Ora, é antiga demais. Ademais, este é um soneto
parnasiano”. E pronunciou esta última palavra com um esgar de
nojo, como se se tratasse de uma grande porcaria.
Precisei
contar até dez para não dizer o que queria naquele momento. Minha
esposa, que vem me ministrando um “curso intensivo” de boas
maneiras, para colocar meu temperamento nos eixos, olhou-me de
soslaio e entendi a mensagem. Respirei fundo, e li uma das minhas
crônicas mais recentes, que, para meu espanto, não mereceu nenhuma
restrição ou o mínimo reparo de ninguém. O tal sacripanta não
ousou dizer que ela não era “moderna”. O texto estava no mais
rigoroso dos padrões atuais do gênero (como poderia não estar).
Fiquei
pasmo face às observações feitas sobre o magnífico soneto de
Florbela Espanca que havia declamado. Deus do céu, encontrar
defeitos imaginários, impingir rótulo, estereotipar um poema tão
belo!!! Até agora, não consigo me conformar com isso. Como não
consigo, principalmente, entender a cabeça dessas pessoas. E não se
trata de nenhum grupo de analfabetos funcionais ou de leitores de
primeira viagem. Naquele círculo só havia escritores, todos com no
mínimo dois livros publicados. Não consigo encarar a literatura de
maneira tão superficial e pedante.
Mas
vinguei-me dessa turma. Pedi de novo a palavra e declamei, pondo alma
e expressão na declamação, este primor de soneto de Cruz e Sousa,
o mais legítimo e característico dos simbolistas, intitulado
“Caminho da glória:
“Este
caminho é cor-de-rosa e é de ouro,
Estranhos
roseirais nela florescem,
Folhas
augustas, nobres reverdecem
De
acanto, mirto e sempiterno louro.
Neste
caminho encontra-se o tesouro
Pelo
qual tantas almas estremecem;
É
por aqui que tantas almas descem
Ao
divino e fremente sorvedouro.
É
por aqui que passam meditando,
Que
cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste
celeste, límpido caminho
Os
seres virginais que vêm da terra,
Ensanguentados
da tremenda guerra,
Embebedados
do sinistro vinho”.
À
medida em que ia declamando, ia me afastando em direção à porta.
Assim que cheguei à parte “embebedados do sinistro vinho”,
deixei o recinto, sem me despedir de ninguém e nem esperar pela
esposa. Com certeza, nunca mais serei convidado para qualquer outra
reunião com essa turma. Ainda bem! Claro que em casa, tive que ouvir
uma espinafração em regra, feita por minha esposa, por minha
“suprema fala de educação”. Mal educado, eu?!!! Não, mulher!!!
Mal educado é quem impõe restrições a um belíssimo soneto de
Florbela Espanca, por entendê-lo como parnasiano (nem sei se de fato
é). Aliás, é mal educado, pedante e burro, o que é muito mais
grave. Cuidado, pois, com rótulos e estereótipos, para não cair
em ridículo.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Nenhum comentário:
Postar um comentário