Quando
já é tarde
* Por Cecília França
Saía deixando ao fundo um salão
imerso em conversas animadas que adentrariam a madrugada. Foi pedido para que
ficasse e participasse com antigos companheiros da comemoração que, enfim,
também era dela. Mas alguém a esperava em casa, como todas as noites, para o
jantar seguido da leitura que culminava com o ressonar na poltrona da sala.
Estava prestes a cruzar a porta de saída quando ouviu a voz. Ele lhe parabenizava pelo prêmio que acabara de receber por sua estimável contribuição ao jornalismo. Não se virou repentinamente. Curtiu por alguns segundos aquela sensação de reencontro sobre a qual tanto escrevera. Percebeu, então, que seus textos jamais conseguiram mensurar a satisfação que sentia naquela hora.
Quando finalmente olhou para o canto do salão, onde a penumbra prejudicava ainda mais sua cansada visão, a primeira coisa que enxergou foi uma bengala. A figura começou a ganhar contornos nítidos ao passo que se aproximava dela. Não imaginava que ele estaria assim, tão mudado. Ela, com seus sessenta e cinco anos completos, ainda conservava o sorriso gracioso da juventude; ele, no entanto, apesar de pouco mais velho, apresentava uma decrepitude espantosa.
As rugas dominavam seu rosto abatido e seu cabelo estava ralo como o de uma criança. A bengala servia de apoio para uma coluna gasta pelo péssimo hábito de permanecer sentado praticamente todo o dia. A despeito disso, o olhar que tanto a perturbara na mocidade permanecia intacto e tentando penetrá-la como outrora.
Deu-lhe os parabéns sem aproximar-se muito. Embora já fosse um escritor renomado, poucos conheciam seu rosto. Menosprezava eventos sociais e ela sabia que, se ele estava ali naquela hora, era por ela.
- Confesso que estou surpresa em
vê-lo aqui.
- Eu também me surpreendi comigo
mesmo quando decidi vir. Mas você não vai participar da sua festa?
- Não, já tenho compromisso.
- Não tem tempo nem para um café
antes de dormir?
Disse que não, pois decidira há anos afastar-se dele por completo e não declinaria agora que já superara todas as sensações de paixão que ele lhe causava. Repetiu que alguém a esperava
- Eu a quis pra mim – disse com
uma sinceridade que não lhe era peculiar.
- Eu também o quis – ela há muito
perdera o medo de declarar seus sentimentos.
- Mas nós nos desperdiçamos e
sobraram apenas esses velhos pálidos, carentes das cores que deveriam ter
imprimido em si na juventude. Telas gastas já não refletem a beleza da paisagem
avistada.
- Mas continuam a decorar.
- Mais por piedade de seus donos
que por merecimento. Não podemos ser protagonistas de um amor carcomido pelo
tempo, do qual nem mesmo o rancor sobreviveu. Resta apenas a incoerente
gratidão.
- Você prefere ficar sozinha?
- Quem é você para me falar em
solidão? Você que se gabava de tê-la abraçado como companheira e usava-a como
escudo para suas desilusões. Não, não sou eu quem a aprecio. Mas hoje já não a
renego. Se ela me escolheu, é o que me resta.
- Muito me admira ouvir isso de
você, sempre tão determinada.
Queria explicar a ele que não mudara suas características, que, ao invés, tornara-as ainda mais fortes, mas estava cansada demais para isso. Sem falar aproximou-se dele com passos firmes e tocou seus ombros com cuidado tentando reviver o primeiro contato físico de anos atrás. Seus lábios então esqueceram a velhice e se aventuraram num longo, forte e faminto beijo, como jamais haviam trocado.
Quando reabriu os olhos já não o via como um senil, mas como o homem que poderia ter controlado sua vida, se quisesse. Naquele momento ela já era muito dona de si para permitir isso. Virou-se com a mesma firmeza e deixou o salão ouvindo, ao fundo, seus clamores por um fim de vida juntos. Não era o que ela queria. Preferia conservá-lo, para sempre, como lembrança.
*Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário