segunda-feira, 14 de abril de 2014

O inventor da pedra

* Por Cecília Prada

Caro poeta Drummond: como é sabido, você deu à humanidade essa contribuição, fez esse favor: nos fazer notar que ela estava ali, na vida de cada um de nós. Que a devíamos ver, aceitar, a pedra – que pensávamos, antes, como coisa a ser ignorada por vergonhosa no heroísmo solitário, inglório, de ter de lutar com ela, chutá-la despedaçando o dedão, diariamente. Inutilmente.

O poeta só não disse como, exatamente, ela era, essa pedra. Como ele a via, a sua pedra pelo menos. Para nos dar mais conforto. Não – que comodismo hein? Apenas nos disse: bem, ela está aí, a pedra, não há como negar, a pedra no caminho é parte integrante da condição humana. É a própria condição da humanidade.

Disse, repetiu, "no meio do caminho", como se fosse apenas pedra à toa, arenosa, esfarelenta, areia na ampulheta (do tempo?) vira prá cá vira prá lá tanto faz. E se foi, acender seu cachimbo e ficar lá sentado – empedrado – no banco da orla, de costas para o mar. Parece que para não ver pedra tamanha logo ali como viemos vindo vida afora imaginando tamanho peso cor e resistência da pedra drummoniana, da pedra consentida – ou pelo menos denunciada?

Houve quem sacudisse os ombros: ora quê pedra? Formação calcárea, com certeza. Friável. Não aguentará o primeiro aguaceiro do verão. Na presunção da juventude: a gente resolve, pode até tentar dissolvê-la entre os dedos, quer ver? Eu... E aí (agora confessamos) ficamos por muito tempo, anos escondendo dedos escalavrados em luvas de precária utilidade. Guardando nas palmas o gosto perverso da pedra.

Ora, pedregulho com certeza. Calhau. Coisa de somenos. Chutado? – unha do dedão cindida ao meio, inflamada, purulenta, pela eternidade.

Questionado, o poeta deu seu sorrizinho de Gioconda e se refugiou em uma frase (sábia, convenhamos): "Uma pedra no caminho / ou apenas no rastro, não importa".

* Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de 1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.



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