* Por Marco Albertim
Toda a véspera do ano-bom Luar Couto passou na casa da amante; o dia e a noite, no réveillon que urdira tão a seu modo; o rosto solene dando lugar à cupidez dos olhos, na mira do vestido inteiriço de Isabel, cobrindo a robustez das carnes. Na antevéspera, suprira-se de amendoins e chocolates; não comera tudo, deixando o colorido da sobra na cesta de cristal que sua esposa, todo ano, punha sobre a mesa da sala. A esposa sabia que não teria de seu lado o esposo; que suas carnes, outrora tenras, conviviam sem queixas com a hesitação da voz. O nariz e a boca, tão finos quanto as patas de um delicado crustáceo, mirraram-se para dentro feito o ângulo curvo de uma castanha. O rosto de Umbelina Couto, a feição sobre o vestido sem decote, parecia um feijão murcho, ainda cru.
Luar Couto, ao lado das prateleiras do supermercado, na fila para pagar a conta com o cartão tão luzidio quanto suas unhas, ouvira cumprimentos, respondendo com módicos olhares e repimpando a voz com votos de feliz ano-novo.
Peru assado, o gordo leitão, nozes e amêndoas, champanha e vinho do porto, cuidara que ficassem sob o zelo de Isabel, de sua cobiça legítima de comborça. A empregada, uma agregada com urdumes cúmplices aos desvãos do juízo da patroa, temperou e pôs ao fogo os camarões com amêndoas e untados no vinho. Conforme as recomendações de Isabel... E o gosto de Luar Couto. A iguaria, Isabel não dissera ao amante, seria apreciada com os olhos absorvendo-a como um amuleto; inda que com gula, a mastigação de Luar Couto, tão redonda quanto seu queixo, seria uma oração de reconhecimento ao amor pastoso entre os dois.
Luar Couto despediu-se da esposa depois do café da manhã. O sol incidindo no terraço dos fundos, o primeiro calor da manhã, não deu conta de que o dia podia ser o começo da prenhez de uma noite carregada de bons presságios. A varanda de onde se miravam cajueiros e mangueiras, trouxe vozes remotas, refeições de temperos esquecidos; dos tempos do bem-querer loução do casal Couto. O lavabo mantivera-se o mesmo na parede, com a torneira acobreada e os azulejos brancos e desenhos de flores azuis em alto-relevo. Dali, agora, desprende-se o cheiro de um unguento espremido de alguma planta no quintal; ou de um chumaço de velas aberto por muitos anos, sem uso, carpindo-se da cor pardacenta das paredes.
O vento sopra entre a folhagem, polindo as rugas no rosto de Umbelina Couto. Ela sabe que o sopro é seu confidente, inda que o inveje por não ter perdido o viço da energia. A negra, tão velha quanto Umbelina, mas senil, recolhe a louça; recolhe e balbucia palavras, frases quando a memória está em rebuliço, de quando ouvira os primeiros elogios do casal de patrões, referindo-se ao prumo de suas mãos no uso dos temperos.
- Sebastiana! – adverte Umbelina – Tire do guarda-roupa meu tailleur azul. Luar quer que eu vá com ele à cerimônia de posse.
- Amanhã eu passo aqui para lhe levar à Câmara. – dissera-lhe Luar Couto – Às quatro horas.
Na casa de Isabel, a porta foi aberta pela empregada. Luar Couto, não sem antes tirar proveito do perfume de lavanda vindo do corredor, saído dos aposentos de Isabel, deu de presente à empregada uma caixa com uma essência própria a sua idade, ainda promissora como a de Isabel. Ela agradeceu e apontou para a sala dos fundos, de onde provinha a seiva de todo o cenário. Ele sorriu prestes a compor um madrigal, sinistro que fosse sob a abastança de seu bigode.
Abraçaram-se, Luar Couto e Isabel, sob o lustre da sala de jantar. Antes do almoço, ele foi servido de vinho. Os dois comeram enquanto ela, amante zelosa, desprendia com um guardanapo a gordura do porco assado no bigode. Riram para o ano entrante, zombaram do passado quando não se conheciam.
À noite, Luar Couto comeu o camarão, a moqueca com amêndoas e castanhas. Mais vinho. Ela no champanha. Os sinos deram conta do ano-bom. Os dois coitaram sôfregos, suados. De manhã, ele não quis comer, queixando-se de enjoo no estômago. Também não almoçou. Despediram-se com um beijo escasso, certos de que o sereno da noite turbilhonara com os gemidos dos dois.
Umbelina Couto, com o tailleur, sentou do lado do marido no carro. No plenário da Câmara, antes que seu nome fosse chamado para fazer o juramento de praxe, correu para o sanitário; deixou o camarão escorrer dos intestinos.
O presidente da cerimônia pediu para que, um de cada vez, após a chamada do nome, dissesse apenas “Assim o prometo” em relação aos votos de honestidade no exercício do mandato. Luar Couto viu a chance de se vingar da fortuna.
- Pela Constituição, pela ética, em defesa da moral, assim o prometo!
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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