segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A criaturinha que chegou de Lilliput

* Por Daniel Santos

A empregada me chegou numa manhã chuvosa de segunda-feira com as canelas respingadas de lama e um sorriso que ela tampava com a mão como se lhe encabulasse a alegria. Veio indicada pela amiga de uma amiga para me salvar da derrocada.

Solteiro e sem talento para cuidar da casa, tudo à minha volta tendia ao caos. Além do mais, comia besteiras e minhas roupas... Ah, alguém precisava resgatar a ordem em que se baseia o curso normal dos dias!

E assim foi. A empregada ocupou o pequeno quarto da área de serviço, onde ela coube com certa folga e, dali, só saía para as lides. Terminado o serviço, voltava a entocar-se para, no mais das vezes, ler salmos e arrumar suas peças de roupa na maletinha de couro surrado.

Desde o primeiro dia, percebi que acertara na loteria: franzina, mas expedita, assumiu com tal garra seus afazeres que logo passei a depender dela para tudo, ou quase tudo.

Cheguei mesmo a sentir que, sem ela, não teria mais condições de gerenciar a própria vida. Com o tempo, além de providenciar de um tudo, passou também a controlar meus horários. E, quanto maiores suas responsabilidades – percebi –, sua estatura parecia diminuir. Foi, então, que a empregada passou a revelar quem era, de fato.

Comecei a desconfiar dela certa manhã em que despertei com o ruído de pezinhos correndo pelo meu quarto. Estremunhado, olhos ainda cegados pela claridade, avistei qualquer coisa que não entendi.

Depois, gargalhadinhas abafadas, geralmente de madrugada. Gargalhadinhas como as de uma criança travessa, que cessavam quando eu chegava à área de serviço – um lugar que não mais sentia como parte da casa, mas como um domínio dela, cada vez mais controladora.

O grande dia, o da revelação, veio logo a seguir. Acordei, como de hábito, às sete horas para trabalhar, mas não me levantei logo, na espera de que ela viesse me trazer o café. Não veio. Então, me levantei, ou melhor, tentei me erguer ... e nada. Estava amarrado!

Sim, da cabeça aos pés, um longo fio de barbante cheio de nós me enrolava e me imobilizava com tal justeza que mal podia respirar. Chamei pela empregada e ela não tardou. Ouvi os tais pezinhos chapinhando pelo assoalho e a tal surgiu gargalhando daquela maneira que eu costumava ouvir de madrugada.

Era ela. Era ela? Diminuíra tanto que parecia alguém de Lilliput, uma criaturinha de nada, mas que, apesar de diminuta, me dominara de vez!

Ao perceber que eu quase me desesperava, logo me libertou. Tomei banho e quando saía ao trabalho, ela me perguntou:
-“A que horas volta?”

Cordato, quase obediente, respondi:
-“À hora de sempre.”

Antes de bater a porta, dei-lhe uma última olhada e vi que sorria. Mas não tampava mais a boca com a mão.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. Mistérios do impossível e do fantástico em cena. O inexplicável domina a vida do rapaz. Enquanto o tamanho diminui, o domínio abre suas asas.

    ResponderExcluir