
O jogo
* Por Jair Lopes
* Por Jair Lopes
Já confessei em texto publicado aqui que sou tímido desde criança, expliquei o que é ser tímido e escrevi o que segue: “Se você morre de medo de falar em público, de declarar seu amor a alguém, de entrar num ambiente iluminado em que não conhece ninguém, torce para não ser notado em lugares abertos, não gosta de ficar nu perto dos outros, procura não atender ao telefone ou transpira ao fazê-lo, você é um tímido. Por outro lado, o isolamento do tímido lhe permite ser mais concentrado, mais introspectivo, mais criativo até, de forma que ao pensar mais e falar menos o tímido tende a errar menos também, porquanto seus ditames são fruto de reflexão mais demorada, mais madura”.
Pois então, como criança tímida, sempre me via em ambientes de adultos nos quais não me “enquadrava”, nos quais, sentado num canto sozinho e sem vontade de conversar com alguém, me via imaginando coisas, observando as pessoas e construindo histórias sobre o que elas eram ou poderiam ser.
Assim, inventei um jogo secreto, o qual eu poderia jogar por horas e horas sem sair do lugar, sem palavras e sem qualquer auxílio externo a não ser a observação das pessoas e minha imaginação que acabou se tornando cada vez mais elaborada. Eu ficava observando as pessoas no ambiente e tentava adivinhar, pelas roupas, adereços e comportamento, pelo que falavam ou pelo que comiam naquele momento, onde moravam, o que faziam normalmente, o que tinham acabado de fazer, qual era o destino delas depois que saíssem dali. Era um exercício de lógica dedutiva à Sherlock Holmes, mas sem crime para solucionar.
Pela expressão do rosto, eu podia imaginar qual era o pensamento daquela senhora gorda que olhava a toda hora para o relógio no seu pulso e não parava de fumar; ou o que estava pensando aquele rapaz bem vestido que comia seu sanduíche e, às vezes, sorria para si mesmo como se tivesse ouvido uma boa piada. Como seria a pessoa que a mulher parecia esperar? Eu prestava atenção em frases e restos de conversa dos adultos, enquanto, também, desenvolvi habilidade para leitura labial, de forma que tinha uma colcha de retalho de expressões, frases soltas e assuntos com os quais eu podia tecer histórias as mais variadas e chegar a conclusões as mais fantasiosas.
Todos se tornavam minha matéria prima da qual eu montava minhas estórias. Por exemplo, aquela mulher alta e bem vestida, com vestido justo decotado, que estava sentada à mesa com sua amiga loira e magra, prometia bom material para uma estória cheia de nuances. Aquela mulher esperava por seu amado, que marcara encontro com ela e esquecera, e por isso ela estava intranqüila olhando para a porta, bebericando uma bebida fraca que não saboreava e nem sentia o gosto, estava se sentindo abandonada. E, de tempos em tempos, ela ia até o toalete retocar a maquiagem que se desfazia com suas lágrimas que teimavam de descer furtivas de seus olhos tristes.
No outro lado da sala, o garçom levou outra bebida para o sujeito entediado que parecia desiludido. Certamente sua mulher o havia deixado ele se sentia só e afogava as mágoas no fundo do copo. Seus olhos estavam opacos, sem vida, ele era um homem morto por dentro. E eu continuo em frente a tecer as teias intrincadas das vidas alheias. O jovem amante que levou a mulher daquele homem é forte, bronzeado e alto, além de ter dentes bons que lhe dão um sorriso de propaganda de creme dental. Aquele marido não teria nenhuma chance mesmo!
Tornei-me uma espécie de vampiro de histórias pessoais, o tempo e a imaginação me forneceram os instrumentos capazes de elaborar em minúcias os meandros e passagens que cada uma de minhas “vítimas” sofrera ou viria sofrer. Minhas estórias acabaram se transformando em verdadeiras novelas nas quais eu tinha liberdade de juntar dois ou mais personagens e conduzi-los da forma que me parecesse melhor e mais dramática.
Também brinquei com a literatura, colocava meus personagens nas estórias de autores conhecidos e dava-lhes chance de viverem novas sensações, amores e aventuras.
É claro que minhas indiscrições envolviam certo risco, se a pessoa que eu observava notava meus olhares inquisitivos, eu sorria com a cara mais inocente do mundo e desviava o olhar. Não era minha intenção constranger ninguém. Na verdade tinha autêntico pavor de ser pego em flagrante nas minhas espiadelas indiscretas e minhas vítimas, ao perceberem, virem tirar satisfação. Mas de qualquer modo, necessito espiar apenas por poucos segundos meus alvos. Meio minuto é suficiente para apanhar aquele instantâneo que me fornecerá material para minhas estórias.
Sou um paparazzo de almas, obtenho fotos de alta resolução das quais construo vidas muito mais sofisticadas e interessantes que as existências o mais das vezes medíocres e insípidas daqueles que clico. Se o leitor notou, a narrativa que se fazia com o verbo no passado, no último parágrafo passou para o presente. É que eu não era tímido, eu sou tímido, de modo que o jogo ainda existe, embora, hoje eu jogue muito menos, minhas estórias estão melhores elaboradas mais intrincadas e convincentes que antes, e cheias de detalhes. O jogo continua!
• Escritor
Pois então, como criança tímida, sempre me via em ambientes de adultos nos quais não me “enquadrava”, nos quais, sentado num canto sozinho e sem vontade de conversar com alguém, me via imaginando coisas, observando as pessoas e construindo histórias sobre o que elas eram ou poderiam ser.
Assim, inventei um jogo secreto, o qual eu poderia jogar por horas e horas sem sair do lugar, sem palavras e sem qualquer auxílio externo a não ser a observação das pessoas e minha imaginação que acabou se tornando cada vez mais elaborada. Eu ficava observando as pessoas no ambiente e tentava adivinhar, pelas roupas, adereços e comportamento, pelo que falavam ou pelo que comiam naquele momento, onde moravam, o que faziam normalmente, o que tinham acabado de fazer, qual era o destino delas depois que saíssem dali. Era um exercício de lógica dedutiva à Sherlock Holmes, mas sem crime para solucionar.
Pela expressão do rosto, eu podia imaginar qual era o pensamento daquela senhora gorda que olhava a toda hora para o relógio no seu pulso e não parava de fumar; ou o que estava pensando aquele rapaz bem vestido que comia seu sanduíche e, às vezes, sorria para si mesmo como se tivesse ouvido uma boa piada. Como seria a pessoa que a mulher parecia esperar? Eu prestava atenção em frases e restos de conversa dos adultos, enquanto, também, desenvolvi habilidade para leitura labial, de forma que tinha uma colcha de retalho de expressões, frases soltas e assuntos com os quais eu podia tecer histórias as mais variadas e chegar a conclusões as mais fantasiosas.
Todos se tornavam minha matéria prima da qual eu montava minhas estórias. Por exemplo, aquela mulher alta e bem vestida, com vestido justo decotado, que estava sentada à mesa com sua amiga loira e magra, prometia bom material para uma estória cheia de nuances. Aquela mulher esperava por seu amado, que marcara encontro com ela e esquecera, e por isso ela estava intranqüila olhando para a porta, bebericando uma bebida fraca que não saboreava e nem sentia o gosto, estava se sentindo abandonada. E, de tempos em tempos, ela ia até o toalete retocar a maquiagem que se desfazia com suas lágrimas que teimavam de descer furtivas de seus olhos tristes.
No outro lado da sala, o garçom levou outra bebida para o sujeito entediado que parecia desiludido. Certamente sua mulher o havia deixado ele se sentia só e afogava as mágoas no fundo do copo. Seus olhos estavam opacos, sem vida, ele era um homem morto por dentro. E eu continuo em frente a tecer as teias intrincadas das vidas alheias. O jovem amante que levou a mulher daquele homem é forte, bronzeado e alto, além de ter dentes bons que lhe dão um sorriso de propaganda de creme dental. Aquele marido não teria nenhuma chance mesmo!
Tornei-me uma espécie de vampiro de histórias pessoais, o tempo e a imaginação me forneceram os instrumentos capazes de elaborar em minúcias os meandros e passagens que cada uma de minhas “vítimas” sofrera ou viria sofrer. Minhas estórias acabaram se transformando em verdadeiras novelas nas quais eu tinha liberdade de juntar dois ou mais personagens e conduzi-los da forma que me parecesse melhor e mais dramática.
Também brinquei com a literatura, colocava meus personagens nas estórias de autores conhecidos e dava-lhes chance de viverem novas sensações, amores e aventuras.
É claro que minhas indiscrições envolviam certo risco, se a pessoa que eu observava notava meus olhares inquisitivos, eu sorria com a cara mais inocente do mundo e desviava o olhar. Não era minha intenção constranger ninguém. Na verdade tinha autêntico pavor de ser pego em flagrante nas minhas espiadelas indiscretas e minhas vítimas, ao perceberem, virem tirar satisfação. Mas de qualquer modo, necessito espiar apenas por poucos segundos meus alvos. Meio minuto é suficiente para apanhar aquele instantâneo que me fornecerá material para minhas estórias.
Sou um paparazzo de almas, obtenho fotos de alta resolução das quais construo vidas muito mais sofisticadas e interessantes que as existências o mais das vezes medíocres e insípidas daqueles que clico. Se o leitor notou, a narrativa que se fazia com o verbo no passado, no último parágrafo passou para o presente. É que eu não era tímido, eu sou tímido, de modo que o jogo ainda existe, embora, hoje eu jogue muito menos, minhas estórias estão melhores elaboradas mais intrincadas e convincentes que antes, e cheias de detalhes. O jogo continua!
• Escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário