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O mercador de Brasília
* Por Deonísio da Silva
O mercador de Veneza, de William Shakespeare, ilumina o mercador de Brasília. Mercador, mercado e mercadores estão na ordem do dia. O agora ex-ministro Ciro Gomes declarou: “O PT não leu Montesquieu, e vivia fazendo essa história, com o chicote moral da nação". Dos denunciantes diz: “Não tem um camarada desses aí que não tenha um petista atravessado na goela".
Homens de letras sabem que a Literatura antecipou o Direito em várias épocas. Mais do que o Direito, fez valer também a Justiça muito antes de ser estipulada na legislação. Não é à toa que advogados de boa formação utilizam textos literários em suas argumentações.
Advogados, juízes e promotores são encontrados entre escritores e também entre personagens literários, alguns dos quais emblemáticos, como é o caso de Baltasar, jovem bacharel que, apresentado pelo famoso advogado Belário, de quem é parente, vai defender Antônio, levado ao tribunal pelo usurário Shylock, que lhe emprestou três mil ducados com a garantia de uma libra de carne do corpo do rico devedor, escolhida da parte do corpo que o credor quisesse. Esta é a trama central de O Mercador de Veneza.
Antônio costuma ofender Shylock, amaldiçoando-o por emprestar dinheiro a juros. Mas seu amigo Bassânio precisa da quantia para fazer a corte à jovem Pórcia, de Belmonte, cujo pai, ao morrer, deixou um testamento estipulando o modo de ela arrumar marido: dispôs três estojos: um de ouro, um de prata, um de chumbo.
O mercador de Veneza aceita a condição de Shylock. O ardiloso financista diz que se trata de uma brincadeira, pois uma libra de carne de Antônio vale menos do que carne de animal, mas insiste para que o contrato seja feito num notário. No íntimo, quer vingar-se de Antônio, a quem odeia profundamente.
Não é somente o amor que é cego, o ódio também. Cego pela amizade, Antônio, confiante que muitos de seus navios mercantes estarão de volta em sessenta dias, aceita o prazo de três meses. Cego pelo ódio, Shylock diz, antes de emprestar: “seus recursos são hipotéticos: um galeão destinado a Trípoli, outro a caminho das Índias, um terceiro no México e um quarto rumo à Inglaterra”. Nesse ínterim, Jéssica, a filha de Shylock, foge com Lourenço, que é apaixonado por ela, levando boa parte da riqueza do pai.
Os navios naufragam. Antônio, prestes a ser sacrificado pessoalmente por Shylock no tribunal, porque tal direito é garantido pelas leis de Veneza, é defendido pelo jovem advogado Baltasar, disfarce adotado por Pórcia, a esta altura já mulher de Bassânio, que escolheu o estojo de chumbo, não sem antes receber preciosa cola da noiva por meio de uma canção que diz: “onde nasce a fantasia?/ No coração, na cabeça?/ É concebida nos olhos/De olhares nutre-se e morre”.
Shylock recusa o pagamento em dinheiro, mesmo que a quantia, muito maior do que a dívida, lhe seja oferecida por Bassânio e apresentada ao tribunal. Ele quer a libra de carne do devedor, tal como estipulado no contrato selado.
Shylock não consegue executar o mercador de Veneza. O jovem advogado diz, depois de ter sugerido que a clemência seria a melhor saída para as partes, pois bendiz a quem a recebe e a quem a concede, que há de ser uma libra exata e não pode haver derramamento de sangue cristão por mãos judaicas, o que as lei também proíbem terminantemente.
Ao poupar-lhe a vida, na reviravolta judiciária, o doge de Veneza, que preside o julgamento, diz a Shylock: “para que vejas a diferença de nossos sentimentos, eu te perdôo a vida antes que me peças”.
A Justiça e o Direito, tidos como valores burgueses, foram seriamente ameaçados por líderes petistas, no atacado e no varejo, tão logo chegaram ao poder, prejudicando enormemente colegas, simpatizantes e, paradoxalmente, não seus notórios adversários, com os quais fizeram alianças espúrias.
Chegou a hora de dar outro fim ao mercador de Brasília. Tomara que a clemência seja mútua. Como nas brigas conjugais, há o ponto de vista do marido, o da mulher e o correto.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
* Por Deonísio da Silva
O mercador de Veneza, de William Shakespeare, ilumina o mercador de Brasília. Mercador, mercado e mercadores estão na ordem do dia. O agora ex-ministro Ciro Gomes declarou: “O PT não leu Montesquieu, e vivia fazendo essa história, com o chicote moral da nação". Dos denunciantes diz: “Não tem um camarada desses aí que não tenha um petista atravessado na goela".
Homens de letras sabem que a Literatura antecipou o Direito em várias épocas. Mais do que o Direito, fez valer também a Justiça muito antes de ser estipulada na legislação. Não é à toa que advogados de boa formação utilizam textos literários em suas argumentações.
Advogados, juízes e promotores são encontrados entre escritores e também entre personagens literários, alguns dos quais emblemáticos, como é o caso de Baltasar, jovem bacharel que, apresentado pelo famoso advogado Belário, de quem é parente, vai defender Antônio, levado ao tribunal pelo usurário Shylock, que lhe emprestou três mil ducados com a garantia de uma libra de carne do corpo do rico devedor, escolhida da parte do corpo que o credor quisesse. Esta é a trama central de O Mercador de Veneza.
Antônio costuma ofender Shylock, amaldiçoando-o por emprestar dinheiro a juros. Mas seu amigo Bassânio precisa da quantia para fazer a corte à jovem Pórcia, de Belmonte, cujo pai, ao morrer, deixou um testamento estipulando o modo de ela arrumar marido: dispôs três estojos: um de ouro, um de prata, um de chumbo.
O mercador de Veneza aceita a condição de Shylock. O ardiloso financista diz que se trata de uma brincadeira, pois uma libra de carne de Antônio vale menos do que carne de animal, mas insiste para que o contrato seja feito num notário. No íntimo, quer vingar-se de Antônio, a quem odeia profundamente.
Não é somente o amor que é cego, o ódio também. Cego pela amizade, Antônio, confiante que muitos de seus navios mercantes estarão de volta em sessenta dias, aceita o prazo de três meses. Cego pelo ódio, Shylock diz, antes de emprestar: “seus recursos são hipotéticos: um galeão destinado a Trípoli, outro a caminho das Índias, um terceiro no México e um quarto rumo à Inglaterra”. Nesse ínterim, Jéssica, a filha de Shylock, foge com Lourenço, que é apaixonado por ela, levando boa parte da riqueza do pai.
Os navios naufragam. Antônio, prestes a ser sacrificado pessoalmente por Shylock no tribunal, porque tal direito é garantido pelas leis de Veneza, é defendido pelo jovem advogado Baltasar, disfarce adotado por Pórcia, a esta altura já mulher de Bassânio, que escolheu o estojo de chumbo, não sem antes receber preciosa cola da noiva por meio de uma canção que diz: “onde nasce a fantasia?/ No coração, na cabeça?/ É concebida nos olhos/De olhares nutre-se e morre”.
Shylock recusa o pagamento em dinheiro, mesmo que a quantia, muito maior do que a dívida, lhe seja oferecida por Bassânio e apresentada ao tribunal. Ele quer a libra de carne do devedor, tal como estipulado no contrato selado.
Shylock não consegue executar o mercador de Veneza. O jovem advogado diz, depois de ter sugerido que a clemência seria a melhor saída para as partes, pois bendiz a quem a recebe e a quem a concede, que há de ser uma libra exata e não pode haver derramamento de sangue cristão por mãos judaicas, o que as lei também proíbem terminantemente.
Ao poupar-lhe a vida, na reviravolta judiciária, o doge de Veneza, que preside o julgamento, diz a Shylock: “para que vejas a diferença de nossos sentimentos, eu te perdôo a vida antes que me peças”.
A Justiça e o Direito, tidos como valores burgueses, foram seriamente ameaçados por líderes petistas, no atacado e no varejo, tão logo chegaram ao poder, prejudicando enormemente colegas, simpatizantes e, paradoxalmente, não seus notórios adversários, com os quais fizeram alianças espúrias.
Chegou a hora de dar outro fim ao mercador de Brasília. Tomara que a clemência seja mútua. Como nas brigas conjugais, há o ponto de vista do marido, o da mulher e o correto.
* Escritor, Doutor em Letras pela USP, autor de 30 livros, alguns transpostos para teatro e TV. Assina colunas semanais no Jornal do Brasil, na Caras e no Observatório da Imprensa. Dirige o Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, no Rio.
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