

Trama de morte
* Por Marco Albertim
- Ele deve morrer logo!
- O matador já foi contratado...
- Sem testemunha?
- Com ou sem testemunha. Nenhuma investigação vai chegar até nós.
Mocinha serve o licor e embute no juízo a trama para matar o advogado. Os homens, donos de engenhos, confiam no soldo pago à polícia. Mocinha veste-se de copeira; compõe-se servil, muda, submissa ao mando de Cremildo. O velho, sentado na cabeceira da mesa no terraço dos fundos do casarão, pendurara o chapéu antes de falar; o gesto servira para pronunciar a autoridade, expor os fios grossos do bigode sem a sombra dos feltros do chapéu. Os outros, mais moços, imitaram-no; puseram no cabide os chapéus, abaixo do de Cremildo, pondo em relevo a hierarquia do canavial. Ludmila, a senhora do engenho, sabe de cor os costumes, herdara-os dos tempos do mel tirado da cana, da rapadura endurecida na fôrma; do velho Serafim Correia, seu pai, de perfil austero à mostra no retrato em branco e preto, na parede, sobre a cabeça de Cremildo. De resto, tem no rosto uma lanugem fina, escura, como um buço que não se crestara.. Não se mete nas decisões do marido, convencera-se de que assim também os criados se sujeitariam.
Os morcegos voam sobre o telhado do quarto onde Mocinha se mantém refém dos bichos, dos hierarcas da casa. Sente-se pinicada, não dorme. Na noite seguinte, espera o fim do jantar. Sai como de costume, para uma oração na capela ou à prosa miúda num banco de praça, ali perto, em Goyaninha. Entra no convento das freiras carmelitas, chama a irmã Amélia.
- Pelo amor de Deus, irmã...! Não diga que foi eu que disse, mas é certo que vão matar doutor Jerônimo. Ele é moço e bondoso, não merece morrer tão cedo!
- Volte para casa. Reze pela vida de doutor Jerônimo. Ele pode se salvar.
Mocinha, devota, reza para o advogado e para si. Irmã Amélia, no oratório escuro, percorre as contas do rosário, olhando com fixidez a luzinha vermelha do Sagrado Coração. De manhã, depois da refeição frugal, vai ao quarto da superiora; tem um olho na madre e outro na imagem de Nossa Senhora envolta num rosário. Como na reza, balbucia o conluio que ouvira.. Obtém da madre licença para romper a clausura. Vai à casa do advogado, insta-o a conseguir proteção.
- Vá a padre Fernando. Peça que abençoe a sua casa com reza e com incenso. Também no seu escritório. Ninguém vai tocar no senhor.
Jerônimo, rápido, vai ao sindicato. Ouve de Jessiê, o presidente:
- Vamos convocar assembleia, instruir os delegados a espalhar a notícia. Se tocarem no senhor, vão receber o troco.
Quando encontra com o administrador do engenho do velho Cremildo, diz:
- Se tocar no doutor Jerônimo, nós vamos tocar fogo no canavial!
A trama segue no mesmo terraço, à sombra do retrato de Serafim Correia. Mocinha, servindo o mesmo licor, ouve:
- Como souberam?! Desta casa os criados só saem para rezar...
Mocinha recolhe à cozinha, os lábios tremelicando; de costas à reunião, cresse infeliz, maginando irmã Amélia na clausura, protegida das ruindades dos homens. À noite, pela porta semiaberta do escritório, vê o patrão entregar um revólver ao administrador. O susto cresce, o coração bate em tropelia. Corre para o seu quarto, acende a luz, apaga quando vê o vulto do administrador no oitão do casarão, entregar o revólver a Simplício. Logo ao namorado que lhe prometera casa, longe do mando da Dona Ludmila. A desgraça bate-lhe na porta, inda que sem a casa.
No domingo, na Procissão dos Passos, reitera os votos de confiança no santo padroeiro. Doutor Jerônimo se pusera na frente, próximo a padre Fernando. O pároco nada soubera. Simplício desce da calçada, rumo ao advogado. Meu Deus! – grunhe Mocinha. Sem ver a arma, Jerônimo pressente-o, lê o fito de morte nos olhos do pistoleiro. O padre, atento a exorcismos, unge-os com água benta. A água que salpica o advogado, respinga em Simplício. Amotina-se dos urdumes de morte, ele, sentindo um fogo nas entranhas. Corre no rumo contrário à procissão, esbarrando em beatas velhas.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
- Ele deve morrer logo!
- O matador já foi contratado...
- Sem testemunha?
- Com ou sem testemunha. Nenhuma investigação vai chegar até nós.
Mocinha serve o licor e embute no juízo a trama para matar o advogado. Os homens, donos de engenhos, confiam no soldo pago à polícia. Mocinha veste-se de copeira; compõe-se servil, muda, submissa ao mando de Cremildo. O velho, sentado na cabeceira da mesa no terraço dos fundos do casarão, pendurara o chapéu antes de falar; o gesto servira para pronunciar a autoridade, expor os fios grossos do bigode sem a sombra dos feltros do chapéu. Os outros, mais moços, imitaram-no; puseram no cabide os chapéus, abaixo do de Cremildo, pondo em relevo a hierarquia do canavial. Ludmila, a senhora do engenho, sabe de cor os costumes, herdara-os dos tempos do mel tirado da cana, da rapadura endurecida na fôrma; do velho Serafim Correia, seu pai, de perfil austero à mostra no retrato em branco e preto, na parede, sobre a cabeça de Cremildo. De resto, tem no rosto uma lanugem fina, escura, como um buço que não se crestara.. Não se mete nas decisões do marido, convencera-se de que assim também os criados se sujeitariam.
Os morcegos voam sobre o telhado do quarto onde Mocinha se mantém refém dos bichos, dos hierarcas da casa. Sente-se pinicada, não dorme. Na noite seguinte, espera o fim do jantar. Sai como de costume, para uma oração na capela ou à prosa miúda num banco de praça, ali perto, em Goyaninha. Entra no convento das freiras carmelitas, chama a irmã Amélia.
- Pelo amor de Deus, irmã...! Não diga que foi eu que disse, mas é certo que vão matar doutor Jerônimo. Ele é moço e bondoso, não merece morrer tão cedo!
- Volte para casa. Reze pela vida de doutor Jerônimo. Ele pode se salvar.
Mocinha, devota, reza para o advogado e para si. Irmã Amélia, no oratório escuro, percorre as contas do rosário, olhando com fixidez a luzinha vermelha do Sagrado Coração. De manhã, depois da refeição frugal, vai ao quarto da superiora; tem um olho na madre e outro na imagem de Nossa Senhora envolta num rosário. Como na reza, balbucia o conluio que ouvira.. Obtém da madre licença para romper a clausura. Vai à casa do advogado, insta-o a conseguir proteção.
- Vá a padre Fernando. Peça que abençoe a sua casa com reza e com incenso. Também no seu escritório. Ninguém vai tocar no senhor.
Jerônimo, rápido, vai ao sindicato. Ouve de Jessiê, o presidente:
- Vamos convocar assembleia, instruir os delegados a espalhar a notícia. Se tocarem no senhor, vão receber o troco.
Quando encontra com o administrador do engenho do velho Cremildo, diz:
- Se tocar no doutor Jerônimo, nós vamos tocar fogo no canavial!
A trama segue no mesmo terraço, à sombra do retrato de Serafim Correia. Mocinha, servindo o mesmo licor, ouve:
- Como souberam?! Desta casa os criados só saem para rezar...
Mocinha recolhe à cozinha, os lábios tremelicando; de costas à reunião, cresse infeliz, maginando irmã Amélia na clausura, protegida das ruindades dos homens. À noite, pela porta semiaberta do escritório, vê o patrão entregar um revólver ao administrador. O susto cresce, o coração bate em tropelia. Corre para o seu quarto, acende a luz, apaga quando vê o vulto do administrador no oitão do casarão, entregar o revólver a Simplício. Logo ao namorado que lhe prometera casa, longe do mando da Dona Ludmila. A desgraça bate-lhe na porta, inda que sem a casa.
No domingo, na Procissão dos Passos, reitera os votos de confiança no santo padroeiro. Doutor Jerônimo se pusera na frente, próximo a padre Fernando. O pároco nada soubera. Simplício desce da calçada, rumo ao advogado. Meu Deus! – grunhe Mocinha. Sem ver a arma, Jerônimo pressente-o, lê o fito de morte nos olhos do pistoleiro. O padre, atento a exorcismos, unge-os com água benta. A água que salpica o advogado, respinga em Simplício. Amotina-se dos urdumes de morte, ele, sentindo um fogo nas entranhas. Corre no rumo contrário à procissão, esbarrando em beatas velhas.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Em pensar que tratos como esses sejam
ResponderExcluirmais corriqueiros do que podemos imaginar.
Abraços
Albertim dosou com maestria literária, vidas habituais (as suas personagens) que não se entendem e não se explicam naturalmente. O medo da morte? O que sei é que, ele, "Corre no rumo contrário à procissão, esbarrando em beatas velhas."
ResponderExcluirAbração do,
José Calvino
RecifeOlinda
Marco Albertim disse...
ResponderExcluirGrato. Abraço em Nubia e em José Calvino.
Marco Albertim
Marco
ResponderExcluirQue construção de mestre. Mais uma vez repito: você se supera a cada texto. E este final está demais. Cabe ao leitor concluir o que aconteceu. Lindo! Parabéns!
Abraços
Receba meu abraço, Risomar-Lírio.
ResponderExcluirMarco Albertim
PARABENS, MEU MANO, VOCÊ É MUITO BOM.
ResponderExcluirUM ABRAÇO.
Tibério Borba (Dinho)
Imagino as diferentes contruções de como este texto poderia ser elaborado. Você adotou o caminho mais difícil, entretanto o resultado ficou extraordinário.
ResponderExcluirParabéns!