

Quando São Paulo pára
* Por Risomar Fasanaro
* Por Risomar Fasanaro
Estava um dia lindo de sol ameno como poucas vezes vejo em Sampa. Preparei o almoço e assim que começou o jogo do Brasil contra a Holanda, aproveitei para ir à Casa do Artista na Avenida Faria Lima comprar alguns materiais de desenho de que preciso.
Nas ruas o silêncio tomava conta de tudo. Silêncio tão absurdo como jamais pensei “ouvir” aqui. Tenho a sensação de que o mundo acabou e me restou a responsabilidade de recriá-lo.
Estava animada. Encontraria a loja completamente deserta, apenas os vendedores e eu. Teria todo tempo do mundo para ver tudo, todos os tipos de papéis, de pincéis, de tintas, vasculhar tudo. Mal conseguia pensar no que compraria.
Procuro um estacionamento e quando entro não vejo ninguém. Poderia estacionar ali e levar as chaves que ninguém perceberia. Mas esse “vírus” de honestidade que nos acompanha, me levou a ir até o fundo do local procurar um funcionário que me atendesse, registrasse a placa do carro e me entregasse o comprovante.
Encontro dois homens em um pequeno quartinho sem nenhuma visão para a entrada tomando Guaraná e comendo pão com mortadela. Nesse preciso instante o Brasil faz um gol, e eles pulam, gritam e comemoram tanto que me deixam sem fala.
Sempre achei um exagero o jeito masculino de comemorar um gol. Eles berram, pulam, gesticulam... Era como se eu não estivesse ali. Espero pacientemente que se aquietem e depois um deles me atende.
Saio e vou até a loja. Mas que loja? Onde está? Com aquela decisão do prefeito de tirar todas as placas das fachadas dos prédios é impossível localizá-la, pois todas, absolutamente todas as portas são de aço, exatamente iguais e estão fechadas.
Encontro uma senhora, a única em todo o bairro (ela me ajudaria a reconstruir o mundo?) e pergunto se a loja ainda existe, ela sorri e me responde que sim, mas só depois do jogo. Hoje está tudo fechado. Volte depois do jogo...
Meu entusiasmo arrefece instantaneamente. Vou ao estacionamento, pago e volto. No caminho me ponho a imaginar como é que um país que vê a todo instante inúmeras pessoas que morreram vítimas das enchentes do nordeste, outras afogadas na lama, perdendo casas, roupas, alimentos, seus pertences mais queridos, como é que se sabe que há três pessoas correndo risco de vida por terem feito greve de fome, e consegue esquecer tudo isso e ficar frente a uma aparelho de TV para assistir a uma partida de futebol, como se no mundo nada mais existisse.
Entro no carro e penso em Manoel da Conceição que recentemente fez greve de fome. Reflito sobre sua dignidade, sua coerência. Um homem cuja história lhe dá plenos direitos ao Nobel da Paz, se na Suécia a comissão que outorga o prêmio conhecesse sua história.
E penso na minha pequenez, na pequenez que, diante da história de Manoel significa um jogo de futebol, ou mesmo todos os jogos da Copa do Mundo. E que ele está lá, frágil, debilitado, se recuperando. Tentando agarra-se aos fiapos de vida que lhe restam, para continuar lutando por suas utopias. A utopia de ver o país atingir seus objetivos sem trair seus princípios, sem perder a dignidade, a mesma verdade com que ele trilhou seus caminhos, sua vida.
Já estou perto de casa, sem os papéis, sem a tinta nanquim, sem os bloquinhos de desenho que fui procurar, e sem esperança.
Minha pátria continua em silêncio. Silencia e chora. Mas há um outro silêncio que me incomoda, e não é esse diante da derrota da partida contra a Holanda...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Nas ruas o silêncio tomava conta de tudo. Silêncio tão absurdo como jamais pensei “ouvir” aqui. Tenho a sensação de que o mundo acabou e me restou a responsabilidade de recriá-lo.
Estava animada. Encontraria a loja completamente deserta, apenas os vendedores e eu. Teria todo tempo do mundo para ver tudo, todos os tipos de papéis, de pincéis, de tintas, vasculhar tudo. Mal conseguia pensar no que compraria.
Procuro um estacionamento e quando entro não vejo ninguém. Poderia estacionar ali e levar as chaves que ninguém perceberia. Mas esse “vírus” de honestidade que nos acompanha, me levou a ir até o fundo do local procurar um funcionário que me atendesse, registrasse a placa do carro e me entregasse o comprovante.
Encontro dois homens em um pequeno quartinho sem nenhuma visão para a entrada tomando Guaraná e comendo pão com mortadela. Nesse preciso instante o Brasil faz um gol, e eles pulam, gritam e comemoram tanto que me deixam sem fala.
Sempre achei um exagero o jeito masculino de comemorar um gol. Eles berram, pulam, gesticulam... Era como se eu não estivesse ali. Espero pacientemente que se aquietem e depois um deles me atende.
Saio e vou até a loja. Mas que loja? Onde está? Com aquela decisão do prefeito de tirar todas as placas das fachadas dos prédios é impossível localizá-la, pois todas, absolutamente todas as portas são de aço, exatamente iguais e estão fechadas.
Encontro uma senhora, a única em todo o bairro (ela me ajudaria a reconstruir o mundo?) e pergunto se a loja ainda existe, ela sorri e me responde que sim, mas só depois do jogo. Hoje está tudo fechado. Volte depois do jogo...
Meu entusiasmo arrefece instantaneamente. Vou ao estacionamento, pago e volto. No caminho me ponho a imaginar como é que um país que vê a todo instante inúmeras pessoas que morreram vítimas das enchentes do nordeste, outras afogadas na lama, perdendo casas, roupas, alimentos, seus pertences mais queridos, como é que se sabe que há três pessoas correndo risco de vida por terem feito greve de fome, e consegue esquecer tudo isso e ficar frente a uma aparelho de TV para assistir a uma partida de futebol, como se no mundo nada mais existisse.
Entro no carro e penso em Manoel da Conceição que recentemente fez greve de fome. Reflito sobre sua dignidade, sua coerência. Um homem cuja história lhe dá plenos direitos ao Nobel da Paz, se na Suécia a comissão que outorga o prêmio conhecesse sua história.
E penso na minha pequenez, na pequenez que, diante da história de Manoel significa um jogo de futebol, ou mesmo todos os jogos da Copa do Mundo. E que ele está lá, frágil, debilitado, se recuperando. Tentando agarra-se aos fiapos de vida que lhe restam, para continuar lutando por suas utopias. A utopia de ver o país atingir seus objetivos sem trair seus princípios, sem perder a dignidade, a mesma verdade com que ele trilhou seus caminhos, sua vida.
Já estou perto de casa, sem os papéis, sem a tinta nanquim, sem os bloquinhos de desenho que fui procurar, e sem esperança.
Minha pátria continua em silêncio. Silencia e chora. Mas há um outro silêncio que me incomoda, e não é esse diante da derrota da partida contra a Holanda...
* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Recife ainda é pior! O Brasil foi derrotado para a Holanda 2x1, de virada, não correspondeu à responsabilidade. Sinceramente, eu gostei, no primeiro gol do Brasil soltaram bombas, a maior poluição sonora com as perturbadoras cornetas!!! No tocante as enchentes, como poderá o Grande Recife receber competições da próxima Copa do Mundo (2014), com enchentes, violência, péssimo transporte público, povo mal educado... E no Rio, como será?
ResponderExcluirÉ preocupante!
Correção: "... E no Rio, como será? A experiência sul-africana é a promessa do que será o Rio de Janeiro e dos problemas que enfrentaremos."
ResponderExcluirO futebol é o ópio do povo, Risomar. Eu fico impressionada...nada contra a Copa, mas algumas reações a respeito não consigo compreender. Aliás, o brasileiro é muito patriota nessa época, principalmente se o time estiver ganhando. Ótimo texto, beijos!
ResponderExcluirCom tanta tragédia, ainda tirar essa réstia de esperança e de distração? Não acho justo. Essa ilusão é necessária. Cada coisa na sua hora e lugar. Não dá para sermos sérios durante todos os dias das nossas vidas.
ResponderExcluirObrigada pelos comentários, amigos queridos Calvino Sayonara e Mara. Gostaria de ter tempo ainda de vida para estudar profundamente o fenômeno futebol. Algo que envolve o povo de forma tão intensa merece ser estudado.
ResponderExcluirVou ler os livros do Eduardo Galeano e do José Miguel Vinisk
beijos
Aqui também para tudo, mas estava em São Paulo no dia em que o Brasil jogou com Portugal e fiquei impressionada com a transformação que ocorreu em São Paulo durante a partida. É uma espécie de paixão e como tal não se explica. Confesso que gosto, assim como gostei muito de sua crônica, Risomar. A vida lhe dará tempo de sobra para estudar e nos ajudar a entender melhor o fenômeno. Beijos e parabéns!
ResponderExcluirDUAS CORREÇÕES: O "PARA" do título é sem acentuação mesmo, Pedro, conforme eu enviei. A segunda vem do meu amigo que vive na Suécia, Guilem Rodrigues da Silva:" queria comentar algo contigo. Quando escreveste que a Suécia deveria dar o Nobel da Paz ao Manoel da Conceição. Não é a Suécia que dá o Nobel da Paz e sim a Noruega. Alfred Nobel o inventor da dinamite, viveu num tempo que a Noruega era uma espécie de colônia da Suécia. O rei da Suécia, Oscar II tinha como lema de governo " Pelo bem dos povos irmãos". O primeiro Prêmio Nobel de literatura foi dado em 1901. Em seu testamento o Grande Alfred Nobel deixou uma pequena parte de sua fortuna ao "povo irmão" para que distribuisse a alguém que se houvesse salientado na luta pela paz. Em 1905 a Noruega separou-se da Suécia e declarou sua independência, contra a vontade do rei sueco e escolheu um príncipe dinamarquês para ser rei do novo reino. O Prêmio Nobel da Paz continuou a ser distribuido pela Noruega. Só isso minha querida."
ResponderExcluirObrigada ao Guilem e a Evelyne pelos comentários
Beijos