quarta-feira, 14 de julho de 2010




As letras da vida real

* Por Mara Narciso

Aos 50 anos e trabalhando como doméstica há três décadas, a vida daquela mulher, que luta contra um câncer, parou. O seu filho foi baleado numa história mal contada e ficou tetraplégico. O rapaz de 22 anos esteve vários dias no CTI, inclusive no respirador, mas voltou para casa respirando por conta própria. A fisioterapia de meses parece inútil, porque os movimentos não voltaram e permanece com os membros muito atrofiados.

A vítima do tiro foi socorrer um amigo injustamente ameaçado e levou a pior. O projétil atingiu a sua quinta vértebra cervical e ele caiu. Como no livro “Feliz ano velho”, de Marcelo Rubens Paiva, o passado parece melhor e mais feliz. Depois da lesão, é conviver com a imobilidade, a dependência e a sensação de inutilidade.

A irmã ajuda no tratamento, virando o rapaz a cada três horas, e benção das bênçãos, não tem escaras, as temíveis feridas que se abrem nos pontos de pressão da pele com o colchão. O uso do tipo caixa-de-ovo ajuda a preveni-las, junto com a higiene e a mudança de posição.

O peso é grande, em todos os sentidos, mas não há tempo para fraquezas. É preciso dobrar os turnos no serviço, e arrumar outros trabalhos. A mulher passou a fazer também limpeza numa clínica, além de atender na recepção.

Movendo-se apenas do pescoço para cima, o rapaz quer morrer. Grita, chora, xinga, quer acabar com sua vida de nada. A mãe trabalha fora mais de 18 horas por dia, cuida dele, reveza com a filha, e ainda busca no mais recôndito do seu ser alguma fala que o console. Diz que nem tudo está perdido, que ele está vivo, que ela o ama, que ele vai melhorar. Sabe que não vai, mas precisa mentir, enganar, dissimular seu próprio desalento, achar alguma coisa para dizer, dia após dia.

Depois da tragédia, uma moça passou a frequentar a casa. Ela interessou-se pelo rapaz e começaram a namorar. Conseguem ter relações sexuais e isso minora um pouco a ira e o desespero do filho, que fica mais na cama, de bruços, mas também na poltrona, amarrado, pois não tem controle de tronco.

O rapaz quer uma boa cadeira-de-rodas, um carrinho velho para ir à fisioterapia e um computador. Começaram as aulas de informática. É possível usar um bastão colocado na boca para alcançar o teclado. Isso o distrai, e antes, o tempo era gasto apenas na televisão. A vizinha chega à tarde. Todas estão exaustas e os recursos financeiros na lona, assim, precisam encontrar alguma solução.

A história mal começou. A saúde dele é boa. A comida dada na boca é bem aceita, a pele permanece íntegra, não tem infecção alguma, seja urinária, seja pulmonar, situação que acomete sistematicamente os acamados.

Quando há recursos financeiros, o desespero se esvai no tempo e nos tratamentos paralelos com psiquiatras, fisioterapeutas, acompanhantes, passeios, estadas nos Hospitais Sara Kubitschek, onde os paralíticos aprendem a ser menos dependentes. Mas aqui não há esses recursos.
É preciso esvaziar a bexiga com sonda de alívio quatro vezes ao dia. As três mulheres cumprem essa missão. Após o uso da sonda, a mesma é lavada e reutilizada 24 horas depois.

A vida vai transcorrendo na sua versão terror. A mãe fica reconfortada pelo fato de ele não usar fraldas. Imagina que o filho se sentiria ainda mais inferiorizado. Mas tem a retenção de urina e fezes. A parte intestinal é a pior parte. A cada três dias, a mãe calça dois pares de luvas sobrepostas e extrai as fezes. Os médicos ensinaram como fazer. Esses procedimentos são os piores de toda a semana. A invasão é devastadora, assim, a revolta dele atinge o seu ápice, enquanto uma dor dilacerante rasga o peito dessa mãe.

Na novela televisiva é possível enlevo e romance para um tetraplégico. O cenário de sonho numa lua-de-mel num hotel em Paris, uma cama com dossel alto e fartos lençóis brancos egípcios, uma piscina no quarto, e um café na cama, após uma noite de amor, são possibilidades.

Todos têm o direito de sonhar, e o lado feio fica do lado de cá, na vida real. A arte imita a vida, de longe, podendo chegar à cabeça das letras, mas não aos pés. Eles ainda estão paralisados.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

3 comentários:

  1. Oi, Mara.
    Admirei, como sempre, o texto inteiro. Uma visão triste e melancólica, mas dolorosamente real. O final ficou especialmente interessante. Parabéns.

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  2. Dolorosa a situação, Mara. Existem tantas histórias difíceis, meu desejo é que cada um, com sua dor, possa superar as próprias dificuldades e ainda sentir prazer em viver. Ótimo! Abraço!

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  3. Valorizo os escultores das suas vidas, e defendo que ninguém pode ofuscar a esperança do outro. Após lidar cinco anos e três meses com meu pai tetraplégico, e ver o final da novela Viver a Vida, comentei com meu filho como eram distantes ficção e realidade. Casos dificeis também servem para redução de queixas fúteis.
    Obrigada Marcelo e Sayonara pelo comentário.

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