

Eu mesmo puxei o gatilho
* Por Eduardo Murta
A ninguém mais revelarei. Prometo. Tão somente a você, na condição única de que se apresente sem fotógrafo, tire os sapatos à entrada, deguste comigo de cachaça curtida em ervas e, o principal, publique o que lhe contar. Talvez houvesse sido insano eleger o bamba entre os repórteres do jornalismo impresso para desnudar-lhe histórias que, aos olhos do mundo, pareceriam nada críveis. Mas eu o fiz.
Aos 89 anos completados, encomendei bolo confeitado em padaria – morangos e cerejas cravados sobre chocolate – e liguei para o número que o expediente do jornal indicava. Ouvi um alô despretensioso do jornalista, elenquei as primeiras frases, notando que ele me punha na conta de um desses lunáticos de plantão. Senti se reposicionar à cadeira e dar vida ao tom de voz quando provoquei: “Vai perder a chance de ficar frente a frente com o maior matador profissional que Minas já produziu?”
.
De cá percebi seus batimentos cardíacos se acelerando. Começava a me levar a sério. Fez perguntas mais precisas, a que me rumasse a um labirinto. Mencionei reviravolta num segredo histórico, mas fui desatando uma a uma as armadilhas. A temperatura da conversa já em brasa, me despedi, para novo contato dia seguinte. Me atendeu desta vez beirando ansiedade de estreante. Ainda que ensaiasse descontração, ao inquirir delicadamente se poderia me tratar por Sr. Morte.
Ri, desautorizei, porque soaria caricato, e dei logo a ele uma razão adicional para me escutar. Mencionei o nome do senador morto dezembro passado. Tiro atravessando a têmpora. Descrevi o prato pedido no restaurante vip da Rua Santa Catarina, o perfume enjoativo em que se banhara naquela manhã, o último beijo (numa garota de programa). E como o sangue se despetalara no terno claro, corte inglês, em pleno coração nobre do Bairro de Lourdes. Era meio-dia.
O senti paralisado à justeza dos detalhes. Talvez tenha lhe tirado do prumo. Fez-se um silêncio de distanciamento, houve um eco de dedos estalados e, em seguida, ele voltou como que se desculpando. Agora queria pronto agendar nosso encontro. Dei meu endereço e, ao mencionar a Praça da Liberdade, a boa memória de repórter o remeteu a duas execuções precisas por lá, entre elas a de um candidato que certamente chegaria à presidência. Bingo!
É ele então quem recebo em meu apartamento, como criteriosamente marcado: às 18h05, noitinha se avizinhando. Mantenho meia luz, as cortinas fechadas. Ambiento clima de filme francês. Ele sem os sapatos, já na segunda dose de pinga, eu disparo sem rodeios: Matei 87 pessoas, a maioria políticos. Tudo anotado em detalhes no caderno verde-musgo sobre a mesa. Só não achará nomes de mandantes. Da primeira tocaia, num distante 1943, Zona da Mata, até ricochetear por todas as regiões mineiras, atravessá-las e romper as fronteiras do Brasil.
Acendi um cigarro de palha no entrecorte das revelações – azar se o incomodava – e lhe contei da mais espetacular de minhas missões. Recrutado numa madrugada de sinuca no Centrão de Belo Horizonte, vieram dois capangas alinhados falando inglês e um intérprete bronco. Dois dias, e eu desembarcaria em solo dos Estados Unidos. Uniforme militar à disposição. Mala cheia de dólares, treinamento, marcaram dia e hora na alameda em que passaria o alvo. Estudei meticulosamente até a direção do vento.
O restante a história consagraria, ainda que tenham atribuído tudo a um mero bode expiatório. Foi para dar conta desse reparo que o chamei aqui. Que saibam todos, enfim: Eu, Cesário Malachias, nascido na Mata da Cauã, analfabeto, filho de analfabetos, puxei o gatilho. Me vem fresca à memória aquela sexta-feira, um 22 de novembro. Dallas, 1963, perto das 12h30. Esqueçam Lee Oswald, porque eu mesmo matei JFK. Contei, dei pistas essenciais, pedi licença ao repórter para uma água e parti pela porta da cozinha. Duvidarem, o fuzil italiano está à terceira porta do guarda-roupas, intacto e lustrado. Publique-se! Ou terei que matar mais alguém?
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
* Por Eduardo Murta
A ninguém mais revelarei. Prometo. Tão somente a você, na condição única de que se apresente sem fotógrafo, tire os sapatos à entrada, deguste comigo de cachaça curtida em ervas e, o principal, publique o que lhe contar. Talvez houvesse sido insano eleger o bamba entre os repórteres do jornalismo impresso para desnudar-lhe histórias que, aos olhos do mundo, pareceriam nada críveis. Mas eu o fiz.
Aos 89 anos completados, encomendei bolo confeitado em padaria – morangos e cerejas cravados sobre chocolate – e liguei para o número que o expediente do jornal indicava. Ouvi um alô despretensioso do jornalista, elenquei as primeiras frases, notando que ele me punha na conta de um desses lunáticos de plantão. Senti se reposicionar à cadeira e dar vida ao tom de voz quando provoquei: “Vai perder a chance de ficar frente a frente com o maior matador profissional que Minas já produziu?”
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De cá percebi seus batimentos cardíacos se acelerando. Começava a me levar a sério. Fez perguntas mais precisas, a que me rumasse a um labirinto. Mencionei reviravolta num segredo histórico, mas fui desatando uma a uma as armadilhas. A temperatura da conversa já em brasa, me despedi, para novo contato dia seguinte. Me atendeu desta vez beirando ansiedade de estreante. Ainda que ensaiasse descontração, ao inquirir delicadamente se poderia me tratar por Sr. Morte.
Ri, desautorizei, porque soaria caricato, e dei logo a ele uma razão adicional para me escutar. Mencionei o nome do senador morto dezembro passado. Tiro atravessando a têmpora. Descrevi o prato pedido no restaurante vip da Rua Santa Catarina, o perfume enjoativo em que se banhara naquela manhã, o último beijo (numa garota de programa). E como o sangue se despetalara no terno claro, corte inglês, em pleno coração nobre do Bairro de Lourdes. Era meio-dia.
O senti paralisado à justeza dos detalhes. Talvez tenha lhe tirado do prumo. Fez-se um silêncio de distanciamento, houve um eco de dedos estalados e, em seguida, ele voltou como que se desculpando. Agora queria pronto agendar nosso encontro. Dei meu endereço e, ao mencionar a Praça da Liberdade, a boa memória de repórter o remeteu a duas execuções precisas por lá, entre elas a de um candidato que certamente chegaria à presidência. Bingo!
É ele então quem recebo em meu apartamento, como criteriosamente marcado: às 18h05, noitinha se avizinhando. Mantenho meia luz, as cortinas fechadas. Ambiento clima de filme francês. Ele sem os sapatos, já na segunda dose de pinga, eu disparo sem rodeios: Matei 87 pessoas, a maioria políticos. Tudo anotado em detalhes no caderno verde-musgo sobre a mesa. Só não achará nomes de mandantes. Da primeira tocaia, num distante 1943, Zona da Mata, até ricochetear por todas as regiões mineiras, atravessá-las e romper as fronteiras do Brasil.
Acendi um cigarro de palha no entrecorte das revelações – azar se o incomodava – e lhe contei da mais espetacular de minhas missões. Recrutado numa madrugada de sinuca no Centrão de Belo Horizonte, vieram dois capangas alinhados falando inglês e um intérprete bronco. Dois dias, e eu desembarcaria em solo dos Estados Unidos. Uniforme militar à disposição. Mala cheia de dólares, treinamento, marcaram dia e hora na alameda em que passaria o alvo. Estudei meticulosamente até a direção do vento.
O restante a história consagraria, ainda que tenham atribuído tudo a um mero bode expiatório. Foi para dar conta desse reparo que o chamei aqui. Que saibam todos, enfim: Eu, Cesário Malachias, nascido na Mata da Cauã, analfabeto, filho de analfabetos, puxei o gatilho. Me vem fresca à memória aquela sexta-feira, um 22 de novembro. Dallas, 1963, perto das 12h30. Esqueçam Lee Oswald, porque eu mesmo matei JFK. Contei, dei pistas essenciais, pedi licença ao repórter para uma água e parti pela porta da cozinha. Duvidarem, o fuzil italiano está à terceira porta do guarda-roupas, intacto e lustrado. Publique-se! Ou terei que matar mais alguém?
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.
Que sinuca de bico! Verdade ou não
ResponderExcluiro repórter vaidoso, sequioso por um
furo jornalístico ficou numa saia justa
de primeira.
Parabéns Eduardo.
Beijos
Não, já chega. Não precisa matar ninguém, pois já quase nos mata de susto. JFK não merecia ser morto, muito menos por um matador profissional de políticos. O que você tem contra eles?
ResponderExcluirEletrizante, Murta. Amplia a história e faça um livro. Muito bom!
Que imaginação,Murta.Forte e conciso. Gostei muito.
ResponderExcluirVê-se que os políticos - exceções raras - são como esse texto: peça de ficção. Que morram de esquecimento.
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