terça-feira, 15 de dezembro de 2009




Pecado Capital

* Por Risomar Fasanaro

Voltou triste do cabeleireiro. As ruas do bairro que conhecia tão bem nunca lhe pareceram tão esburacadas, as calçadas tão desniveladas. Deveria ter vindo de carro, pensou, mas era a mania de andar a pé para tudo ver, tudo analisar. Podia passar cem vezes pela mesma rua, haveria sempre uma realidade nova, uma árvore a florir, o tronco de outra que alguém cortara. Sim, o mesmo caminho é sempre um rio.

Embora as outras clientes do salão tivessem elogiado o corte, aquilo soava como um castigo. Ficara três anos sem cortar os cabelos, toda semana massageando-os com um creme em que misturava abacate, azeite de oliva e gema de ovo. Tratamento antigo que aprendera com a avó, mas que funcionava melhor que os cremes industrializados.

Após massagear os cabelos, deixava que permanecesse varias horas, e só então lavava a cabeça. Mas o resultado valia a pena: os cabelos iam até quase a cintura sem um fio quebrado sequer, e eram alvo de elogios por onde passasse.

Sentou-se diante do espelho e não reconheceu aquele rosto. Sentiu-se feia, sem graça. Onde estavam aqueles cabelos tão bonitos emoldurando o rosto? Tudo perdido. Tivera de cortar e ficar com aquele semblante onde faltava algo. Quanto tempo teria de esperar até que eles crescessem novamente?

Levantou-se desanimada, vestiu a primeira roupa que tirou do guarda-roupa, sem nenhum entusiasmo para se arrumar. Fora embora o que tinha de mais bonito, e teria de esperar anos até que voltassem a crescer.

Naquela tarde chegou à escola irritada. Ela que jamais levantara a voz com aquelas crianças já entrou na sala implicando. Por que estão aqui na porta em vez de ficarem sentados me esperando? Aquilo não era normal, pois mesmo quando não conseguiam escrever, ela era toda paciência. Sentava-se com eles na carteira, segurava aquelas mãozinhas miúdas entre as suas, e ajudava-os a descobrir a magia da escrita. Vibrava a cada traço que percorrendo a historia do homem, um dia, quando ela menos esperava, os rabiscos se transformavam em letras, em sílabas, em palavras.

Às vezes sentia vontade de sair da sala de aula e ir para a rua com o caderno de algum deles nas mãos mostrando: “vejam!... Ele escreveu. Olhem só: tanto tempo, tanta dificuldade, e agora está aqui. Olhem! São letras. São palavras!” Mas se continha. Elogiava-os e ficava ali mesmo, curtindo sozinha aquela vitória anônima, que só quem alfabetizou é capaz de entender, de saber o que significa. Ficar meses e meses acompanhando aquele serzinho, e de repente vê-lo de pé, com a cartilha na mão lendo sem gaguejar:

“Eu sou o Palhaço
Minha casa é de pau
Palhaço Pa
Pa, pe, pi, po, pu”

Mas naquela tarde a professora devia ter sido trocada por outra na rua. Os pequenos estranharam aquela moça que eles não conheciam e que era a mesma de todos os dias, mas que hoje era outra na mesma. Assustaram-se com o tom áspero, ríspido mesmo, com a completa ausência de um sorriso, sua marca registrada.

Tão irritada estava que se esqueceu de fazer a chamada, e quando um dos alunos levantou-se e foi até sua mesa lembrá-la, recebeu-o com quatro pedras na mão:
-Vá sentar-se, ninguém lhe chamou aqui!
-Mas profe...
-Vá sentar-se, já disse!

Onde estava a candura da mestra? Teria ido embora com os cabelos cortados? Não tinha sido assim com Sansão? Nela talvez... Se dele levara a força, o vigor, dela levara a delicadeza.

Não dormiu. A noite toda chorou lamentando a perda dos cabelos. De algum deles pegara aqueles piolhos ao sentar-se em alguma das carteiras. Não bastava o tratamento injusto da diretora, que lhe cortava o ponto quando ela se atrasava dez minutos, depois de esperar uma hora um ônibus que não chegava nunca, de atolar os sapatos no barro nos dias de chuva...De não ver seu trabalho reconhecido por ninguém, ainda pegar piolhos e ter de cortar os cabelos...

No dia seguinte pela manhã, com os olhos inchados, saiu para comprar pão. Foi na volta para casa que o viu. Era um homem ainda jovem, talvez tivesse uns trinta anos. Não tinha as duas pernas. Estava em uma cadeira de rodas. Uma cadeira de rodas dessas bem precárias, com o assento e o encosto de lona, muito gasta, muito velha. E o homem, no lugar dos joelhos, trazia duas rodilhas de pano encardidas. Aquilo evitava que os tocos de pernas não se ferissem, não sangrassem, quando precisasse descer da cadeira para fazer alguma coisa.

Ele olhou para ela e sorriu estendendo um bilhete de loteria:
-Compra moça, hoje vai dar borboleta!

Por que aquele homem lhe aparecera justamente naquela manhã? Quem era ele afinal que ela jamais o vira naquele bairro? Ou só se dera conta de sua existência naquela manhã? As roupas meio sujas, remendadas, e ainda mais com aquele problema. Um ser incompleto, sem pernas...
-Se a senhora comprar, me ajuda. Tenho três filhos na escola...

A escola... Sim a escola... Um prédio que precisava de reforma urgente e o governo não autorizava. As portas não fechavam direito; no inverno o vento frio entrava pelas janelas, e no verão era como se estivessem todos dentro de um forno. Aquilo concorria para que as crianças ficassem agitadas, se distraíssem. E o mais grave: facilitava a entrada de ladrões que roubavam os poucos recursos que tinham: computador, microscópio, aparelho de som, e o pior: facilitava a entrada de traficantes no período noturno. Ainda bem que ela só lecionava durante o dia.

Seria ele pai de algum dos seus alunos? Pois não vinham alguns com sandálias de dedo, camisetas meio rasgadas e sem meias naquele frio? Tão pobres que a diretora da escola havia suprimido a saída das classes na hora do recreio... Recreio que passara a se chamar de intervalo, já que poucos eram os que levavam lanche. Seria o garoto que lhe lembrara a chamada, um dos filhos daquele homem? O homem estava ali, parado, olhando para ela e esperando:
-A senhora vai levar, moça?

Olhou a pilha de bilhetes e não se conteve:
-Como o senhor consegue vender todos esses bilhetes?

O homem sorriu, e ela viu que ele tinha um sorriso bonito que destoava do olhar triste, das rugas na testa:
-A gente precisa. Tenho mulher e três filhos.
-E as pernas, como foi isso?
-Foi o trem, moça. Eu voltava da fábrica, o trem lotado, caí e me machuquei. O médico teve de amputar, estavam totalmente esmigalhadas.
- E como senhor ficou? Ficou muito revoltado?
- Eu revoltado? Não moça... Há coisas bem piores. Eu estou na caixa, recebo um dinheirinho, e completo com a venda dos bilhetes. Tenho saúde, tenho família. O que tenho pra reclamar? Há coisas bem piores...
- Vou levar um.
-Esse da borboleta, moça?
-Sim, esse da borboleta.
..
Colocou o bilhete na bolsa e caminhou de volta à casa. De repente sentiu o calor do sol e notou que o dia estava muito bonito. Uma borboleta azul cortou o ar à sua frente. Olhou o relógio e percebeu que estava quase na hora de entrar na escola. Precisava apressar o passo, para não chegar atrasada.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.


6 comentários:

  1. Minha querida Risomar, seu texto é lindo
    simples, e de uma candura tão grande que
    me senti abraçada...
    Obrigado
    beijos

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  2. Conto com uma bela lição de vida.
    Leveza. Sensibilidade. Amor.
    " Sim, o mesmo caminho é sempre um rio". Também adoro caminhar. Coloca as ideias em ordem e faz bem ao espírito.
    O bilhete da professora pode não ser premiado, mas com certeza, o que ela ganhou em maturidade e liberdade, não tem dinheiro no mundo que pague.
    Lindo !

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  3. Borboleta significa juventude na velhice, renovação durante a decadência, algo assim que se empertiga e reivindica a vida. Parabéns, Ris, por mais esta pérola de afeto.

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  4. Meus queridos Nubia, Celamar, Daniel
    O melhor de tudo é ser lida por pessoas como vocês.
    Obrigada pelas palavras de incentivo!
    Beijos nos três
    Ris

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  5. Riso; Borboleta 13?, rs... suas crônicas e contos são de uma leveza e ao mesmo tempo de uma profundidade que nos enleva. Vejo-me viajando com suas personagens quando as leio. Um deleite, sem rebuscos e linguagem somples e direta. Beijos.

    João Subires

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  6. O encontro com quem era preciso encontrar pareceu-me fortuito, e não forçado. Não tenho me encontrado com lições de vida ambulantes, mas sempre as vejo em todos os momentos. Não as evoco nos meu momentos de desespero, mas deveria. Há possibilidade de carregar imensas dores, com alguma tolerância. O paralelo com Sansão foi muito feliz. Caso eu perca meus cabelos ficarei também assim, como uma "arara sureca", mas não serei grosseira. Gostei muito Risomar.

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