segunda-feira, 13 de julho de 2009




Uma injeção na veia

* Por Mara Narciso


Em dois dias consegui finalizar a minha primeira matéria da disciplina de Telejornalismo. Era sobre os carroceiros e o desafio de integrá-los numa cidade de quatrocentos mil habitantes, com seus entulhos e a sua destinação inadequada. Entre a pré-entrevista, feitura da pauta, filmagem, execução do “off” e edição, trabalhei cerca de nove horas, mas gostei do resultado final de três minutos e nove segundos, que visualizei ontem.

Hoje o dia começou bem mais cedo que de costume, já que a tosse e a falta de ar do meu pai estrondavam o mundo de forma rascante, bem antes das quatro horas. O tabagismo de quatro décadas aliado ao estado acamado de mais de quatro anos e meio respondem por parte dos sinais, e as bactérias se encarregam do restante. O aerosol já estava a todo gás, e sem efeito, assim pedi a Victor, o técnico de enfermagem da noite, que chamasse a fisioterapeuta logo cedo para fazer as manobras respiratórias, e também o médico para ver com qual antibiótico começar. A enfermeira chefe viria trocar a sonda vesical que está sendo substituída a cada 15 dias, sendo que comprei ontem o material para a troca.

Saí para o consultório logo após as sete horas, bastante preocupada, mas lá, a agenda cheia me distraiu. O trabalho pode ser uma anestesia potente para os males do corpo e do coração. Os assuntos se diversificam, há muitos clientes interessantes e fontes permanentes de muitas mil histórias. Mais tarde telefonei para o meu filho Fernando, que leu o noticiário: a sonda já tinha sido trocada pela enfermeira, mas estava sangrando um pouco. A fisioterapeuta tinha feito as manobras respiratórias e pai, como sempre, respirava mal, porém menos mal. O médico ficou de vir depois.

Voltei para casa às 13 horas, e depois do almoço estive no computador. À noitinha, o médico acabara de chegar, e conversava com Jardel, o técnico em enfermagem do dia. Após cumprimentá-lo, pedi licença e saí com meu filho para a nossa caminhada, deixando o dinheiro separado e orientando o rapaz para solicitar da farmácia o que fosse preciso. O médico, como já era evidente, disse ser uma infecção pulmonar. Comentei com Fernando que muitos deveriam estranhar vendo-me sair assim, com meu pai não estando bem, e o médico visitando-o em casa. Meu filho disse-me, no entanto, que a nossa vida não deveria parar por isso, e se eu ficasse, a respiração de meu pai não melhoraria. Achei a argumentação convincente.

Na caminhada aproveitei para contar a Fernando como tinha sido a montagem da matéria jornalística. Corria um vento frio, mas não chegou a atrapalhar a nossa conversa agradável. Na chegada, quarenta e cinco minutos depois, vi as receitas do antibiótico, já pedido da farmácia, e um corticóide hidrocortisona para injeção intravenosa, de uso hospitalar. O médico foi contatado e conseguiu via telefone, autorização do hospital para nos fornecer a ampola.

Já estava na hora da minha aula começar. Após o jantar dei carona a Fernando para ele pegar o remédio no hospital. Foi quando vi que ele tinha esquecido a receita. Assim o pedi que voltasse para pegá-la, e fui para a faculdade.

Sexta-feira é um dia bem vazio por lá, mas como íamos gravar a apresentação do jornal na bancada, num treino cujo primeiro exercício eu tinha perdido, não poderia deixar de participar. Quanto às câmeras e microfones, não mais ligamos para eles, no entanto, as várias habilidades necessárias para fazer tantas coisas ao mesmo tempo, como ficar na postura correta, ler o telepronter com entonação e vibração se assim o assunto permitir, passar as folhas do script sem erros, com leveza e segurança, empunhar corretamente a caneta, e virar o rosto a cada mudança de câmera, não é exatamente fácil, quando feitos pela primeira vez. Fernando ligara há pouco dizendo que tinha perdido a receita na rua, e assim pensei em mais tarde fazer eu mesma uma nova receita.

Então, preocupada e dispersa, ao gravar esqueci-me de passar uma das laudas, o que me confundiu na leitura. Também falei de forma inexpressiva, a ponto de uma colega perguntar-me: “seu marido morreu?”. Mas, enfim, dei conta de terminar a tarefa.

Telefonei para casa e soube que meu filho tinha reencontrado a receita médica bem na porta, e conseguira comprar o remédio. Respirei fundo o ar gelado do pátio do recreio, debaixo das mangueiras, tomei a minha xícara de café e fui para a aula de Redação Publicitária. Porém, quando iria começar a apresentar meu trabalho, um cartaz baseado numa campanha da Secretaria do Meio Ambiente de Montes Claros, cujo tema era “Lixo e cidadania”, Victor liga dizendo que o remédio estava perdido, pois tinha furado pai nove vezes e não conseguira dar o corticóide. A seringa estava com sangue coagulado e imprestável. Mandei fazer o aerosol mais cedo e pensaria em como resolver o problema.

Encontrei pai respirando mais serenamente, sem puxar muito o fôlego, em relativa calma. O antibiótico já tinha sido dado, o aerosol com expectorante causou um pouco de alívio, e eu autorizei a dar-lhe uma injeção de expectorante por via intramuscular, com bastante cuidado, como medida heróica. Pedi que pressionasse o local por bastante tempo para impedir a formação de hematoma.

O remédio foi aplicado, passaram-se uns poucos minutos e a casa mergulhou no silêncio. Ouço apenas a “ventoinha” do computador e as minhas pancadas no teclado. Afinal a noite agora é toda minha, para estar só, para brincar ou brigar com os meus fantasmas, e falar com todos os anjos e demônios que vierem para conversar comigo.

* Médica, acadêmica de Jornalismo e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

4 comentários:

  1. A crônica lembra a página do diário de uma filha extremada que se doa 24 horas por dia, sem tempo para si própria, exceto navegar na net. Mulheres têm essa capacidade ilimitada de amar, e talvez por isso a humanidade venceu a barbárie. Uma dedicação anônima e silenciosa, que nada pede. Fazem o almoço, servem o almoço e ainda nos perguntam se está bom. Deus deve estar vendo e contabilizando. Se não está, eu reclamo: "Ô, psit, olhe pra cá e interceda em favor da melhor parte da Tua criação!" E vc, cara Mara, faz parte dessa melhor parte. Parabéns.

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  2. Daniel, esse dia foi tão longo e penoso que eu acabei por chatear o leitor com um texto tão longo e complicado quanto foi o dia. Agradeço a paciência e o comentário. Muito obrigada pelo incentivo.

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  3. Olha aí: mais uma vez o jornalismo encontra a medicina para produzir literatura. E literatura sensível, que fala às pessoas, gostosa de ler. Parabéns, Mara.

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  4. Obrigada Marcelo, pela força. Já estou encontrando maneiras de compatibilizar os dois caminhos. Acredito que conseguirei.

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