sábado, 5 de junho de 2010




Enxurrada

* Por Edmundo Pacheco

Chovia. Chovia. Chovia...

Se o céu fosse uma noiva, abandonada no altar pelo ex-noivo, quase futuro marido (desgraçado! Fugiu com a biscate da Lurdinha!), não estaria chorando tanto.

Ao longo da avenida já não dava mais pra divisar o que era meio-fio, o que era calçada. Era um rio. Marrom escuro... Um caldo de feijão carioquinha novo, cozido em panela de ferro, e parecia delicioso, não fosse o lixo que descia rua abaixo, boiando.

O lixo e algo mais...

Foi em caldo de feijão que Nelson pensou, olhando pra rua, enquanto entrava na lanchonete combinada.

Está com fome. Muita fome.

Havia viajado a noite toda num ônibus malacafento, que parava até pros cachorros que abanavam o rabo na beira da estrada. E pra ajudar, tinha uma velha... A velha, sentada na poltrona de trás, resolveu usar o coitado do vizinho de assento como psicólogo e contou-lhe toda a sua miserável vida. Falou. Falou. Falou, da hora em que se sentou no ônibus até a parada onde foram trocados os motoristas.

Misteriosamente, a velha não reembarcou no ônibus e ninguém sentiu falta dela. Se sentiu, calou-se, com medo de que o coletivo voltasse para buscá-la.

Se tivessem voltado, e se procurassem direito, teriam encontrado a maldita da velha jogada, de pernas pro ar dentro de um contêiner de lixo. Os olhos esbugalhados, talvez de surpresa, talvez de dor. As saias erguidas na cabeça e o calçolão mijado, talvez de medo, talvez de aperto mesmo. E uma lança, improvisada de um pedaço de caibro de peroba vermelha, trespassada no peito. Embaixo do contêiner fechado, se alguém tivesse observado com olhos de Sherlock, uma poça de sangue. No meio do sangue, mister Holmes teria encontrado uma carteira de um certo Nelson da Silva. O nome era, obviamente, falso, ou talvez não, mas os 300 reais que ela continha não. Eram tudo o que o talvez-Nelson tinha naquela viagem.

Como não aproveitara os minutinhos da parada para comer qualquer coisa, como fizeram os demais passageiros, talvez-Nelson não percebera a perda da carteira até ser tarde demais. E ainda, havia amargado uma fome de leão. E, pra ajudar, chegara à cidade debaixo da maior chuvarada da história. Agora, sem dinheiro nem pra pedir um copo d’água e dois palitos, ele estava ali, conforme o combinado, mas ninguém mais havia aparecido.

- Desgraçado, se me der o cano eu mato... – disse, de si pra si, olhando de soslaio o balconista de cabelos vermelhos que, por sua vez, também sondava o estranho de sobretudo de lã escura e chapéu, que entrara àquela hora da manhã no bar. É certo que chovia e o cara devia estar a fim de abrigo, mas que era estranho, isso lá ele era...
- Pois não senhor... – resolveu arriscar.
- Vou esperar uma pessoa... Posso?
- Claro, claro... E quer beber ou comer algo enquanto espera?

O estômago roncou. Nelson queria SIM, desesperadamente, comer e beber alguma coisa. Muita coisa. A velha gorda, filha da puta, tinha recebido o seu, mas a que preço? Viajar com fome era pior que a morte... Nelson pensou em pedir tudo o que a lanchonete tivesse e se refestelar, mas... E se o tal sujeito que encomendara o serviço não viesse... Como pagar?
- Não, obrigado. Só quero me sentar um pouco e esperar... – O rapaz assentiu com a cabeça e voltou à pia de louças sujas que o esperava.

Nelson sentou-se, olhando a vidraça castigada pela chuvarada. Lá na esquina pensou ver uma criança sendo carregada pela enxurrada. Era um garoto. Podia estar brincando. Se divertindo... Podia estar se afogando... Nelson ficou olhando a cena, meio embevecido, meio perplexo, sem se decidir...
- Gostosa brincadeira... – Comentou de si pra si.

O garotinho continuou descendo rua abaixo no caldo de feijão. Às vezes afundava. Às vezes aparecia quase de corpo inteiro no meio do lixo. Passou rápido na frente da vidraça onde Nelson estava. Por um segundo os olhos do garoto cruzaram com os dele. Era um olhar de desespero, de pedido de socorro, de pavor... De adeus... Nelson achou engraçada a cena e acenou para ele, enquanto afundava num bueiro da esquina.

Do outro lado da rua, um cavalo mecânico Scania Vabis laranja parou, represando o lixo que continuava a descer, boiando no caldo de feijão carioca. O motorista, sujeito de chapéu e fartos bigodes amarelados pelo excesso de cigarro, abriu a janela e fez sinal para que Nelson fosse até ele.
- Desgraçado... Deve ser o dono da encomenda. Agora, além de ficar sem comer nada ainda vou ter que sair nessa chuva...
- O senhor falou comigo?
- Nada... Bosta!!
- Olha, se o senhor não vai consumir nada, então saia – disse o rapazola, abaixando-se, sabe-se lá por qual motivo.

Quando se levantou, não teve tempo de rever o mundo. Levou um telefone com dois suportes pontiagudos de papel. O sangue esguichou sujando a louça que acabara de lavar. Morto de surpresa, o rapaz desceu escorregando pelo balcão abaixo até o chão. O pano que havia se abaixado pra pegar sob o balcão, caiu sobre ele e foi sendo tingido de um vermelho profundo, devagarinhooo... Talvez-Nelson ficou ali, olhando admirado a cena. Gostou... Pareceu-lhe um quadro que vira certa vez, na casa de um ricaço onde fora executar um serviço.

Depois de alguns segundo, ergueu o vidro da pequena estufa que enfeitava o longo balcão de fórmica e pegou dois ovos cozidos. Um de cada cor. Saindo, ainda pegou um saleiro que estava sobre uma das mesas.

Lá fora, puxou a gola do casaco sobre o rosto e enfiou os pés na água, enquanto saboreava o ovo verde. O azul deixara no bolso, pra mais tarde. O estômago roncou agradecido. Caminhou até a porta do caminhão, com dificuldade. Vez ou outra, algum lixo se prendia nas pernas e a enxurrada ameaçava carregá-lo, como fizera com o garotinho.

Subiu no estribo, segurou-se no retrovisor e bateu de leve na janela da Scania. O bigodudo abriu um tanto... De dentro, um forte cheiro de cigarro escapuliu em desespero.
- Qual é a encomenda?
O bigodudo tirou o chapelão panamá, jogou de lado e pegou um envelope marrom claro que estava em seu colo e esticou-o na chuva.
- É isso ai... – disse, sem olhar pra fora.
- E o dinheiro?
- Metade agora, metade depois... Conforme o combinado.
- Tá aqui?
- Tá ai... – finalizou, ligando o motorzão... Um rolo de fumaça preta misturou-se à chuva. Nelson não gostou dele. Fedia cigarro. E ele detestava fumantes.

Ainda se segurando no retrovisor com a mão esquerda, Nelson enfiou o envelopão dentro do casaco.
- Desce daí que estou com pressa. – ordenou o bigodudo fedido, fechando a janela e acelerando motor.

Quando a mão de Nelson ressurgiu, trazia um dos suportes de papel, ainda pintado de vermelho. A força da pancada, ajudada pelo peso da base do suporte, fê-lo atravessar o vidro; a ponta aguçada enterrou-se até base na moleira do bigodudo. Um melado grosso tingiu o painel e o bigodão.

Entre o susto, a dor e a o olhar da morte a espreitá-lo, o bigodudo se esqueceu da embreagem e o caminhão deu um forte tranco pra frente. Nelson desequilibrou-se e caiu de costas no caldo de feijão. O cavalo, engatado, disparou. Nelson ainda teve tempo de ler a marca do pneuzão, que se aproximava de sua cabeça. Depois, tudo ficou escuro.

A carreta desceu indecisa, até encontrar um poste.

No meio da enxurrada, o corpo inerte de talvez-Nelson começou a ser arrastado devagarzinho rumo ao bueiro.

O envelope marrom, com pressa, desenroscou-se do casaco e disparou boiando junto com o resto do lixo...

E foi desaparecer, depois de dar duas ou três voltas em torno do buraco da esquina.

*Jornalista, 45 anos, editor-chefe da TV Guairaca (afiliada Globo) Guarapuava, PR

2 comentários:

  1. Um fim bem natural para quem não via
    mais graça em nada a não ser na lama
    de feijão carioquinha.

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