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Difícil talento - Final
* Por Gustavo do Carmo
Dirigia seu ônibus semivazio, lotado apenas por ele e mais três passageiros: um estudante moreno claro, uma senhora gorda e negra e uma mulata de cabelos louros num vestido justo, segurando uma bolsa. Não havia trocador. Era ele mesmo quem recebia o dinheiro pelas passagens.
Passava por uma rua erma próxima a uma favela. Alguém lhe deu sinal para parar fora do ponto. Mesmo desconfiado com a aparência dos passageiros, parou por puro profissionalismo.
Eram dois negros como ele, com roupas largadas e rasgadas, cheiro de bebida e dentes branquíssimos. Um deles com os cabelos pintados de louro. Ambos têm voz carregada de gírias, mas o outro, um careca, xingou, depois de ver o ônibus vazio:
— Caralho! A porra desse ônibus tá vazio, muleque! Num dá pra assaltá ninguém hoji.
— Aí! Vamu assaltá assim mermo. Vai dar pra tirá alguma coisa! Insiste o “louro”.
— Dá nada! Muita poca gente!
— Mas tem um playboy ali cheio de rôpa de marca.
Os meliantes pulam sobre a roleta. O “louro” tira a sua arma da cintura da bermuda e rouba a mochila de marca do estudante, jogando seus livros pela janela aberta. O careca rouba o relógio da moça, a bolsinha de trocados da idosa e o mp3 do estudante. Antes de saírem, fazem questão de dar um tiro certeiro na cabeça de Breno, que cai morto sobre o volante. O estudante assaltado corre para o volante, pula a catraca e pisa no freio.
Ansioso para oficializar a revelação do primeiro talento que descobriu Agostino madruga no clube. Vai direto ao campo de futebol, sem sequer procurar pelo primo Severino. Mas este logo o encontra e diz, com semblante fúnebre:
— Você ia passar direto por mim, né? Mas preciso te dizer uma coisa.
Achando que Breno teria se saído mal em outro teste ou mesmo tendo descoberto que o problema de coração que tinha o impediria de iniciar uma carreira profissional de jogador de futebol, Agostino resignou-se:
— O Breno não serviu, né?
— Vem cá que eu vou te levar pra falar com o Jamílson.
— Cara, o que houve?
Agostino não teve resposta do primo enquanto não o colocou em contato próximo do responsável por treinar os novos talentos. Encontrou Jamílson também com fisionomia mortuária, tendo o acréscimo do brilho das lágrimas em seus olhos.
O pernambucano que tentava descobrir talentos desde que chegou ao Rio apavorou-se com o clima de tristeza no clube. Não era só do primo e do treinador. Apreensivo perguntou:
— O que houve Jamílson? O Breno não foi aprovado.
— Aprovado foi. E era uma das melhores promessas do clube.
— Já sei. Alguém foi mais esperto do que a gente e contratou o cara?
— Não! Respondeu Jamílson impaciente.
— O que houve então?
— O Breno morreu!
— Quê isso, cara???? Não brinca!!!!
— Não estou brincando. O Breno morreu ontem de madrugada.
Arrasado, Agostino tenta suspirar fundo e pergunta:
— Foi coração? Ele teve um problema cardíaco quando criança.
— Não. Foi assassinado. Levou um tiro na cabeça de um assaltante no seu turno de motorista de ônibus.
A ficha caiu e Agostino deu um grito que ecoou por todos os departamentos do clube:
— NÃÃÃÃÃÃO!!!!!!!!!!!!!!!
Saiu esbaforido e atravessou todo o corredor do clube. Do campo à portaria. Ganhou a rua. Não viu o táxi que passava em alta velocidade. Voou alto.
Agostino teve alta do hospital após seis meses de coma. Recebeu a visita de Eliélton e sua filha Michelle Silva, que acharam melhor não contar para ele que o pedreiro ia gravar um CD e que a menina fora contratada por um grande time de vôlei para atuar na equipe juvenil.
Desistiu de caçar talentos. Decidiu desenvolver o próprio. Dedicou-se a fundo ao trabalho, estudou e foi aprovado no vestibular de arquitetura.
Dez anos depois já estava formado e realizado na profissão. Agostino tornou-se um homem de negócios, sem tempo de ler o caderno de esportes do jornal, que anunciava Michelle como a melhor jogadora das olimpíadas, após ajudar a seleção brasileira a conquistar uma medalha de ouro. No caderno de cultura um anúncio de um DVD com o dueto de Martina Reis com Eliélton da Silva. O arquiteto só lia os cadernos de economia e de imóveis.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
* Por Gustavo do Carmo
Dirigia seu ônibus semivazio, lotado apenas por ele e mais três passageiros: um estudante moreno claro, uma senhora gorda e negra e uma mulata de cabelos louros num vestido justo, segurando uma bolsa. Não havia trocador. Era ele mesmo quem recebia o dinheiro pelas passagens.
Passava por uma rua erma próxima a uma favela. Alguém lhe deu sinal para parar fora do ponto. Mesmo desconfiado com a aparência dos passageiros, parou por puro profissionalismo.
Eram dois negros como ele, com roupas largadas e rasgadas, cheiro de bebida e dentes branquíssimos. Um deles com os cabelos pintados de louro. Ambos têm voz carregada de gírias, mas o outro, um careca, xingou, depois de ver o ônibus vazio:
— Caralho! A porra desse ônibus tá vazio, muleque! Num dá pra assaltá ninguém hoji.
— Aí! Vamu assaltá assim mermo. Vai dar pra tirá alguma coisa! Insiste o “louro”.
— Dá nada! Muita poca gente!
— Mas tem um playboy ali cheio de rôpa de marca.
Os meliantes pulam sobre a roleta. O “louro” tira a sua arma da cintura da bermuda e rouba a mochila de marca do estudante, jogando seus livros pela janela aberta. O careca rouba o relógio da moça, a bolsinha de trocados da idosa e o mp3 do estudante. Antes de saírem, fazem questão de dar um tiro certeiro na cabeça de Breno, que cai morto sobre o volante. O estudante assaltado corre para o volante, pula a catraca e pisa no freio.
Ansioso para oficializar a revelação do primeiro talento que descobriu Agostino madruga no clube. Vai direto ao campo de futebol, sem sequer procurar pelo primo Severino. Mas este logo o encontra e diz, com semblante fúnebre:
— Você ia passar direto por mim, né? Mas preciso te dizer uma coisa.
Achando que Breno teria se saído mal em outro teste ou mesmo tendo descoberto que o problema de coração que tinha o impediria de iniciar uma carreira profissional de jogador de futebol, Agostino resignou-se:
— O Breno não serviu, né?
— Vem cá que eu vou te levar pra falar com o Jamílson.
— Cara, o que houve?
Agostino não teve resposta do primo enquanto não o colocou em contato próximo do responsável por treinar os novos talentos. Encontrou Jamílson também com fisionomia mortuária, tendo o acréscimo do brilho das lágrimas em seus olhos.
O pernambucano que tentava descobrir talentos desde que chegou ao Rio apavorou-se com o clima de tristeza no clube. Não era só do primo e do treinador. Apreensivo perguntou:
— O que houve Jamílson? O Breno não foi aprovado.
— Aprovado foi. E era uma das melhores promessas do clube.
— Já sei. Alguém foi mais esperto do que a gente e contratou o cara?
— Não! Respondeu Jamílson impaciente.
— O que houve então?
— O Breno morreu!
— Quê isso, cara???? Não brinca!!!!
— Não estou brincando. O Breno morreu ontem de madrugada.
Arrasado, Agostino tenta suspirar fundo e pergunta:
— Foi coração? Ele teve um problema cardíaco quando criança.
— Não. Foi assassinado. Levou um tiro na cabeça de um assaltante no seu turno de motorista de ônibus.
A ficha caiu e Agostino deu um grito que ecoou por todos os departamentos do clube:
— NÃÃÃÃÃÃO!!!!!!!!!!!!!!!
Saiu esbaforido e atravessou todo o corredor do clube. Do campo à portaria. Ganhou a rua. Não viu o táxi que passava em alta velocidade. Voou alto.
Agostino teve alta do hospital após seis meses de coma. Recebeu a visita de Eliélton e sua filha Michelle Silva, que acharam melhor não contar para ele que o pedreiro ia gravar um CD e que a menina fora contratada por um grande time de vôlei para atuar na equipe juvenil.
Desistiu de caçar talentos. Decidiu desenvolver o próprio. Dedicou-se a fundo ao trabalho, estudou e foi aprovado no vestibular de arquitetura.
Dez anos depois já estava formado e realizado na profissão. Agostino tornou-se um homem de negócios, sem tempo de ler o caderno de esportes do jornal, que anunciava Michelle como a melhor jogadora das olimpíadas, após ajudar a seleção brasileira a conquistar uma medalha de ouro. No caderno de cultura um anúncio de um DVD com o dueto de Martina Reis com Eliélton da Silva. O arquiteto só lia os cadernos de economia e de imóveis.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
Eu sabia que algo de ruim ia acontecer ao
ResponderExcluirmenino.
Agostino se descobriu da maneira mais dolorosa
que existe, através do sofrimento. Porém me curvo
ao seu próprio talento, o de nunca desistir e o de
fazer com que os outros procurassem em si aquilo que ninguém mais via...
Parabéns Gustavo.
Beijos
O errado que deu certo, finalmente.
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