quinta-feira, 4 de março de 2010




Difícil talento - Final

* Por Gustavo do Carmo

Dirigia seu ônibus semivazio, lotado apenas por ele e mais três passageiros: um estudante moreno claro, uma senhora gorda e negra e uma mulata de cabelos louros num vestido justo, segurando uma bolsa. Não havia trocador. Era ele mesmo quem recebia o dinheiro pelas passagens.

Passava por uma rua erma próxima a uma favela. Alguém lhe deu sinal para parar fora do ponto. Mesmo desconfiado com a aparência dos passageiros, parou por puro profissionalismo.

Eram dois negros como ele, com roupas largadas e rasgadas, cheiro de bebida e dentes branquíssimos. Um deles com os cabelos pintados de louro. Ambos têm voz carregada de gírias, mas o outro, um careca, xingou, depois de ver o ônibus vazio:
— Caralho! A porra desse ônibus tá vazio, muleque! Num dá pra assaltá ninguém hoji.
— Aí! Vamu assaltá assim mermo. Vai dar pra tirá alguma coisa! Insiste o “louro”.
— Dá nada! Muita poca gente!
— Mas tem um playboy ali cheio de rôpa de marca.

Os meliantes pulam sobre a roleta. O “louro” tira a sua arma da cintura da bermuda e rouba a mochila de marca do estudante, jogando seus livros pela janela aberta. O careca rouba o relógio da moça, a bolsinha de trocados da idosa e o mp3 do estudante. Antes de saírem, fazem questão de dar um tiro certeiro na cabeça de Breno, que cai morto sobre o volante. O estudante assaltado corre para o volante, pula a catraca e pisa no freio.

Ansioso para oficializar a revelação do primeiro talento que descobriu Agostino madruga no clube. Vai direto ao campo de futebol, sem sequer procurar pelo primo Severino. Mas este logo o encontra e diz, com semblante fúnebre:
— Você ia passar direto por mim, né? Mas preciso te dizer uma coisa.

Achando que Breno teria se saído mal em outro teste ou mesmo tendo descoberto que o problema de coração que tinha o impediria de iniciar uma carreira profissional de jogador de futebol, Agostino resignou-se:
— O Breno não serviu, né?
— Vem cá que eu vou te levar pra falar com o Jamílson.
— Cara, o que houve?

Agostino não teve resposta do primo enquanto não o colocou em contato próximo do responsável por treinar os novos talentos. Encontrou Jamílson também com fisionomia mortuária, tendo o acréscimo do brilho das lágrimas em seus olhos.

O pernambucano que tentava descobrir talentos desde que chegou ao Rio apavorou-se com o clima de tristeza no clube. Não era só do primo e do treinador. Apreensivo perguntou:
— O que houve Jamílson? O Breno não foi aprovado.
— Aprovado foi. E era uma das melhores promessas do clube.
— Já sei. Alguém foi mais esperto do que a gente e contratou o cara?
— Não! Respondeu Jamílson impaciente.
— O que houve então?
— O Breno morreu!
— Quê isso, cara???? Não brinca!!!!
— Não estou brincando. O Breno morreu ontem de madrugada.

Arrasado, Agostino tenta suspirar fundo e pergunta:
— Foi coração? Ele teve um problema cardíaco quando criança.
— Não. Foi assassinado. Levou um tiro na cabeça de um assaltante no seu turno de motorista de ônibus.

A ficha caiu e Agostino deu um grito que ecoou por todos os departamentos do clube:
— NÃÃÃÃÃÃO!!!!!!!!!!!!!!!

Saiu esbaforido e atravessou todo o corredor do clube. Do campo à portaria. Ganhou a rua. Não viu o táxi que passava em alta velocidade. Voou alto.

Agostino teve alta do hospital após seis meses de coma. Recebeu a visita de Eliélton e sua filha Michelle Silva, que acharam melhor não contar para ele que o pedreiro ia gravar um CD e que a menina fora contratada por um grande time de vôlei para atuar na equipe juvenil.

Desistiu de caçar talentos. Decidiu desenvolver o próprio. Dedicou-se a fundo ao trabalho, estudou e foi aprovado no vestibular de arquitetura.

Dez anos depois já estava formado e realizado na profissão. Agostino tornou-se um homem de negócios, sem tempo de ler o caderno de esportes do jornal, que anunciava Michelle como a melhor jogadora das olimpíadas, após ajudar a seleção brasileira a conquistar uma medalha de ouro. No caderno de cultura um anúncio de um DVD com o dueto de Martina Reis com Eliélton da Silva. O arquiteto só lia os cadernos de economia e de imóveis.

* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos” pela Editora Multifoco/Selo Redondezas - RJ. Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores

2 comentários:

  1. Eu sabia que algo de ruim ia acontecer ao
    menino.
    Agostino se descobriu da maneira mais dolorosa
    que existe, através do sofrimento. Porém me curvo
    ao seu próprio talento, o de nunca desistir e o de
    fazer com que os outros procurassem em si aquilo que ninguém mais via...
    Parabéns Gustavo.
    Beijos

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