domingo, 14 de março de 2010




O retábulo de Jerônimo Bosch: uma poética em louvor da vida

* Por Luiz Carlos Monteiro

Diante da poesia de Everardo Norões em Retábulo de Jerônimo Bosch constata-se, com margem razoável de acerto, que ele chegou a um ponto de sua criação que pode ser traduzido como domínio da palavra poética. Uma afirmação deste tipo suscita questionamentos, embora, de início, devam ser afastados resquícios da rigidez totalizante que sempre acompanham as afirmações. O fato é que Norões, um cearense radicado no Recife, vem mantendo um cuidado especial no manejo da linguagem poética desde os Poemas Argelinos (1981), porém se manifestando com mais força em A Rua do Padre Inglês (2006).

A Rua do Padre Inglês traz poemas que têm como características básicas a densidade e a precisão, onde se inclui com bastante desvelo a utilização constante de insights técnicos como comparações, metonímias e metáforas. E isto resulta numa multiplicidade de efeitos estilísticos, fonéticos e rítmicos buscados e rebuscados poema a poema, verso a verso, palavra a palavra. Assim como no Retábulo de Jerônimo Bosch, há poemas e palavras que estabelecem relações linguísticas, notadamente nominativas, fora da língua-pátria, e também retratam vivências, paisagens, situações, encontros e ausências referentes a outros países e regiões, que não apenas o Brasil.
Tal zelo em sua poesia se reflete na grande maioria dos versos e poemas que constrói, mesmo quando troca a rima pelo ritmo, a música pela liberdade da escrita, e isto sem sacrificar a fruição nem o reflexivo. O leitor verificará que alguma sonoridade esperada no andamento de um poema poderá, de repente, ser quebrada. O simples deslocamento de um vocábulo altera foneticidades óbvias, promovendo, assim, um novo olhar estilístico e, em consequência, uma nova maneira de ser ler o poema. É preciso, ao fim de determinadas estrofes, um retorno ao início do poema ou da estrofe para melhor verificar correlações específicas do poético como o emprego localizado de anáforas, aliterações, assonâncias e recortes rítmicos dissonantes.

Livro afora, os exemplos são numerosos. Porque ninguém se engane: mesmo o poema de inspiração, aquele que vem como um jorro na hora em que é escrito, passará por alguma transformação posterior. Muitos poetas, especialmente os românticos, não tiveram o tempo de vida necessário para definir as formas finais de sua escrita ou cotejar versões de um mesmo texto. Já outros, que viveram mais e puderam trabalhar melhor o que escreveram, na escolha, no acréscimo ou na supressão de palavras, conseguiram desvendar minúcias formais, promovendo a inovação de estruturas materiais em seus versos.

Norões fixa e rememora situações de conjunto que alertam para questões políticas ainda não totalmente esclarecidas. No poema “Os desaparecidos”, traça um quadro do que foi a destinação de quem se opunha ao regime militar no Brasil: a morte sem aviso ou lápide, o silenciamento de quem deixou de ser visto ou ouvido. Os versos retratam os acontecimentos velados e o poema assume voz coletiva e histórica. Mas podem fazer vir à tona a individualidade ansiosa de quem deseja escapar do desterro, à espera de um barqueiro símile dos mensageiros de boas-novas como em “Dies irae” (Dia de ira). Ou à espreita em “Janela”, um poema do bloco IV, que vale a pena ser citado: “Uma janela dilacera a paisagem:/ lá fora não é o meu país./ Arde a palavra estrangeira/ em minha palma:/ tempo traço giz.// O silêncio/ retalha nossa língua:/ há tantas horas tristes nesta tarde.../ A cal do muro aviva esse vazio/ e cala”.

Nos sete poemas do bloco V, intitulados Meditações de Frei Martinho de Nantes, percute a voz, a solidão e a persona histórica do Frei que cuidou dos índios Cariris às margens do rio São Francisco. Frei Martinho, do mesmo modo que a maioria dos religiosos que vieram para o Brasil na colonização, tinha muito de aventureiro, mesmo quando se pensa na sua missão educativa e doutrinadora. No seu roteiro missionário estava presente um modo de vida obstinado que nem as hostilidades ambientais do locus sertanejo, o convívio difícil com os indígenas, a demora na chegada de notícias da terra francesa o levavam a desanimar. A sua grande motivação talvez fosse legar, ao fim, um possível testemunho escrito aos séculos depois do seu.

A alternância entre o mundo rural nordestino e a vivência em outros lugares e países se processa através da subdivisão dos blocos do Retábulo. Em duas partes torna-se mais explícito o relato rural das vivências familiares. O bloco I mostra o “tempo caprino” no país do algodão: tudo ali se faz em lida e brancura, em breu e escuridão noturna, com poucos e bem vividos momentos de lazer. O poema pode ser desenredado da volta ao abrigo da casa para um trago e a refeição, do intervalo para a música, o sono e o voo, da desolação das mãos maternas que dizem adeus para sempre.
No bloco VI, exceto por “Os encourados”, nova designação para os vaqueiros que tangem e botam os bois no pasto ou em jornada, a religiosidade se destaca em poemas ainda que de teor profano como “Ofício” e “Bolero”, “As tias’ e “Natal”. Pode haver, como no bloco final VII, a interpenetração natural dos dois universos: “O quarto de Faulkner” aparece junto a “Os do vento nordeste”, estabelecendo associações entre o localista e o externo, o deserto da caatinga e a planície americana. Referências que se constatam e se repetem também em outros instantes envolvendo personagens nativos nordestinos e de outras paragens, sejam francesas, árabes, argelinas, latino-americanas ou italianas.

Everardo Norões escreve tanto sobre coisas simples, comuns e cotidianas, como sobre assuntos metafísicos, graves, não-fáceis e tensionados. Estabelece um equilíbrio entre as duas instâncias, sem apelo ao popularesco, mantendo sua inclinação de poeta erudito. Pode-se discordar dele, da metaforização intrincada que empreende às vezes, mas não se pode duvidar de seus firmes e definidos propósitos em poesia. Mesmo porque essa poesia tem o sentido de demarcar um espaço essencial e instigante no mundo para a louvação do amor e da vida.

* Poeta, crítico literário e ensaísta, blog www.omundocircundande.blogspot.com

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