sexta-feira, 5 de junho de 2009




O garçom invisível de Jarbas Vasconcelos

* Por Urariano Mota


“Há um restaurante que eu frequento há mais de trinta anos no bairro de Brasília Teimosa, no Recife. Na semana passada cheguei lá e não encontrei o garçom que sempre me atendeu. Perguntei ao gerente e descobri que ele conseguiu uma bolsa para ele e outra para o filho e desistiu de trabalhar. Esse é um retrato do Bolsa Família”.


Brasília Teimosa é um bairro do Recife que sempre lembrou paradoxos. Nascida na Zona Sul da cidade, em terras valorizadas, foi construída por invasões de pescadores, sem teto e demais pessoas pobres. Tendo o nome de Brasília, adaptou a sua arquitetura pelo adjetivo, Teimosa, porque jamais seus casebres foram as linhas curvas de Niemeyer. Eram, antes, linhas de fuga, para que os moradores fugissem das prisões da polícia. Hoje, a Brasília Teimosa está urbanizada, tem a praia repleta de beleza e restaurantes. Antigos moradores que moravam em palafitas, a realizar o ciclo de Josué de Castro, caranguejo comido pelo homem vira fezes que alimentam caranguejo, estão agora em conjuntos habitacionais. Mas Brasilia Teimosa continua a ser mãe e pátria de paradoxais caranguejos.

O último deles foi a entrevista do senador Jarbas Vasconcelos ao semanário onde o Brasil é uma pauta. Nela, na entrevista, na revista e pauta, foi mencionado um garçom que de posse de duas Bolsas Família desistira de trabalhar. Isso porque, é claro, estaria em melhor situação, como se estivesse a cantar em redes ao balanço, “pois vivo na malandragem, e vida melhor não há”. Com o breque: não sei o que será. Então por isso fui. Fui a campo, ao mangue, à praia, a Brasília Teimosa, ao vizinho bairro do Pina, à procura dos bares frequentados pelo senador nos “últimos 30 anos”.

A lógica era primária. Antes do garçom, havia que localizar o restaurante em Brasília Teimosa, onde antes de se balançar em redes, a cantarolar sambas, ele trabalhava. Acreditem, no bairro e vizinhança fui aos seis maiores restaurantes, lugares de assento do senador. Insatisfeito, fui a mais dois médios, onde ele nos últimos tempos poderia ter passado. E a dois próximos de restaurantes médios, onde ele, talvez quem sabe, num lapso pudesse ter acenado de passagem. Não lhes posso dizer os nomes – não me autorizaram – mas bem posso lhes adiantar a experiência vivida em três horas da missão “procura-se o garçom de Jarbas Vasconcelos”.

Manda a experiência, que antes de chegar ao local do crime o repórter pesquise, pergunte às pessoas invisíveis, mas que tudo veem. Por isso antes de entrar no primeiro, perguntei a duas senhoras idosas, uma delas moradora do bairro há mais de 40 anos. Ou seja, 10 antes de Jarbas Vasconcelos começar a beber e comer nas redondezas.

- Boa tarde. Me diga por favor: esse restaurante aí é frequentado por Jarbas?

- Jarbas?!

- Jarbas Vasconcelos, o senador.

- (Com pena do repórter) Hen-hen... Só se ele vem escondido, de madrugada. Eu passo o dia todinho aqui, sentada, olhando o movimento. A não ser que ele vá em outro. Mas pergunte aos empregados, eles sabem. O senhor é pastor?

Como não é comum evangélico de barbas grisalhas, imagino que a bondosa senhora me confunde com algum fundador de igreja nova. Nego a honra, agradeço e continuo. O garçom é meu guia.

Pergunto ao flanelinha por Jarbas, que Jarbas?, nada. Entro no restaurante. E pergunto, como se uma resposta positiva fosse uma valorização, que me faria escolher o lugar para comer. É uma hora da tarde.

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

- O senador?! Olhe, faz muito tempo que não. Eu trabalho aqui há mais de um ano.

Nem lhe pergunto pelo garçom. Pois o felizardo deve ser, ou ter sido do concorrente. Ao próximo. Pergunto ao flanelinha, nada. Pergunto ao colega do boa-vida, nada. Dirijo-me ao dono.

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

- Antes ele vinha, há muito tempo. Quem veio agora foi Dilma.

- A ministra?

Confirma e manda me servir, sob protestos frágeis do repórter, um maravilhoso caldinho de peixe com uma cachaça curtida. Que peixe, que cana, que pena. Não posso viver na malandragem, e por isso tenho que ir até o próximo restaurante.

O próximo, onde se escondia o garçom, fica em local de acesso complicado, de caminho estreitíssimo, que exige bons pneus e perícia ao volante. Acredito que não fosse a esperteza de álcool acendida, eu teria voado sobre os arrecifes, rumo ao mar. Um caminhão de repente surgiu em uma curva sobre a pista estreita. Nós dois não poderíamos ali coexistir. Ora co, nem mesmo existir. Por isso joguei o carro à direita, para os lados da brisa do oceano. Mas o motorista súbito, com inesperada gentileza, desceu meio sobre uma encosta. Fui salvo. Para quê?

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

O garçom que não procuro sorri. Ou ele duvida de minha sanidade, ou das barbas mal postas, ou de minha cara de susto, que guarda a nítida lembrança da pista. Por onde tenho que voltar, com redobrada cautela. Então eu volto, vou até o próximo lugar que o senador Jarbas Vasconcelos frequenta há mais de 30 anos. Pergunto ao flanelinha, “Jarbas, etc., etc.?”. Acreditem, o flanelinha tem pena do repórter. Ele não me faz perder a esperança. Não me cobra nada pela vaga e sugere, com enorme educação e solidariedade, que eu vá aos garçons. “Aos colegas do bon vivant”, eu me digo, a esta altura suado e escolado. Que lugar agradável ! Eu não acredito que um homem troque o trabalho aqui por qualquer paraíso do lar, doce lar. Música suave, mpb, gente bonita, cheiro bom de todas as coisas, de crustáceos, com vista do mar, e aquele ar de distinção nos clientes, que os garçons sabem ser anúncio de gorjeta boa. Ele jamais poderia ter deixado este lugar. Mas o dever obriga:

- Jarbas Vasconcelos vem sempre aqui?

O gerente me olha, complacente, piedoso, e responde com um ar que pode significar “por que você não pergunta se aqui vêm o presidente Lula, Hugo Chávez e Obama?”. Dá um toque na campainha para anunciar o prato pedido. Entendo. Por isso evito a visão das patas largas do guaiamum, abertas, convidativas, obscenas, e sigo até o próximo.

Devo dizer que a esta altura a raiva invadia o repórter. Estava começando a cansar dos restaurantes onde Jarbas ia há mais de 30 anos. Melhor dizendo: estava cansando de ir aos restaurantes de Brasília Teimosa onde Jarbas não punha os pés há mais de 10 anos. Perguntava a motoristas de táxi, a pedintes, a soldados da PM, a flanelinhas, a frentistas nos postos, a seguranças, a moradores vizinhos, a gerentes, até a mim mesmo, “Jarbas vem sempre etc.?”. Algo me dizia que o senador da república andara trocando datas, políticos e garçons. Algo me gritava que a memória do ilustre senador pregara uma peça. Quando partia para o décimo primeiro me ocorreu: e se em lugar da pista do garçom nos restaurantes de Brasília Teimosa, eu ponderasse os dados que fazem um trabalhador qualificado trocar o emprego pelo Bolsa Família?

Ora, o piso da categoria, no Recife, é a do salário mínimo, 465 reais. O piso. Mas garçons recebem gorjetas, e 10 por cento, e refeições. Se trabalham em restaurantes do nível a que Jarbas e políticos do gênero frequentam, podem chegar a dois mil reais por mês, sem muito esforço. Por outro lado, o site da Caixa, para o Bolsa Família, informa:

“Básico - Concedido às famílias em situação de extrema pobreza. O valor desse benefício é de R$ 62,00 mensais, independentemente da composição e do número de membros do grupo familiar.
Variável - Destinado a famílias que se encontrem em situação de pobreza ou extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças e adolescentes até 15 anos. O valor mínimo é de R$ 20,00 e cada família pode acumular até três benefícios, ou seja, R$ 60,00
Variável para Jovem - Destinado a famílias que se encontrem em situação de pobreza ou extrema pobreza e que tenham em sua composição adolescentes entre 16 e 17 anos. O valor do benefício é de R$ 30,00 e cada família pode acumular até dois benefícios, ou seja, R$ 60,00.
As famílias em situação de extrema pobreza podem acumular o benefício básico o variável e o variável para jovem, até o máximo de R$ 182,00 por mês”.

Notem que o valor máximo do Bolsa Família é de 182 reais. 60, valor máximo do Variável, mais 60 do Variável para jovens, mais 62 para as famílias em extrema pobreza. Portanto, 60+60+62 = 182, por família. Isso significa que o garçom afortunado, se profundamente miserável, trocaria seus dois mil reais por mês pela fortuna de 182. Porque a Bolsa é concedida por família, não seriam duas, uma para o garçom, outra para o seu filho, como declarou a ética do nobre senador.

Montaigne ensinou, no Livro I dos Ensaios, que “não deve meter-se a mentir quem não tem memória. Quando repetem, alterando-a, uma mesma história, é-lhes difícil não se contradizerem. Além daquilo que por imprudência podem deixar escapar, qual a memória capaz de lembrar as formas tão diversas que imaginaram para sua história?”.
Somente agora compreendo que a minha pesquisa pode ter sido inútil. Não é que o senador tenha mentido, forjado uma história, confundido tempos e lugares, misturado restaurantes, lugares e políticas de governo na mais absoluta desinformação. O senador é um homem íntegro. Ele deve andar com um problema de memória. Ou padecer de visões etílicas, criadoras de garçons fantasmas.

* Jornalista e escritor

4 comentários:

  1. O senador já prestou valorosos serviços à nação, e não só através das denúncias de suas recentes entrevistas. Deixemo-lo beber à vontade no bar que escolher. Talvez nem beba. Talvez, escandalizado pelas próprias denúncias, ou pela coragem que se percebe nelas, ele apenas pensa que bebe. Sua investigação, caro Urariano, foi quem sabe em vão, mas rendeu crônica tão saborosa quanto a agulha-frita que nessa sua terra de bravos acompanha a cerveja. Parabéns.

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  2. Acho até desagradável falarmos em política, mas Jarbas Vasconcelos, um peemedebista com bico e pluma de tucano.... Muito mais seguro é confiar no Uriano.

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  3. Boa resposta a quem critica essas bolsas. Lemos muitos outros absurdos de teor semelhante disseminados em várias fontes. Agora posso responder as provocações baseando-me na sua caça ao garçom.

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  4. Chego tão atarsado, que minha resposta perde o sentido.
    Então lhes digo: os seus comentários são lidos e curtidos. Muito obrigado, amigos.

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