segunda-feira, 8 de junho de 2009




A conspiração dos ventos me levou aos céus

Por Eduardo Murta

Um pedido como aquele pesaria mais que a coleção completa dos compêndios de filosofia. Maximiliano ouviu e ficou assim sem norte por um instante. Vagando. Deixou de mordiscar a ponta do lápis, anotou a página em que estacionara na nova série francesa sobre Platão. E se reservaria ao filho. O que é mesmo que ele queria? Um... um papagaio? Não, não!!! Era doutrinariamente contrário a tirar bichos silvestres de seu mundo próprio. Pedisse outra coisa. E o menino batendo na mesma tecla.

Ia dar de ombros, quando Digo se fez entender: não era ave, mas destes em papel de seda e taquara de bambu. E emendara: não valia comprar pronto. Se enfadara dos modelos com estampas de super-heróis. Desejava, em resumo, que nascesse das mãos do pai. Mais que um desejo, era um sentença. Maximiliano escutou os detalhes e ficou alisando o vidro do relógio. Agia desta forma sempre que confrontado com becos sem saída – as aulas iniciais de mandarim, os conselhos do dermatologista para que se habituasse à condição de calvo.
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Sem respostas prontas, pensou em como seria confortável estar em casa. Consultaria guias pela internet, dispararia telefonemas para casas especializadas. Estudaria croquis nos mínimos detalhes. Mas não ali. A quilômetros de qualquer estabelecimento que lembrasse tecnologia. Os balcões em fumo de rolo e lingüiça defumada, do velho Dedé. Os biscoitos em forno de barro, de Sisalpina.

Se convertera em refém dos acontecimentos. O filho lustrando a expectativa de jeito comezinho, como quem espera a primavera na esquina. Ruminou, ruminou, ruminou... E vislumbrou um impedimento. Onde é mesmo que conseguiriam papel, cola e linha naquele cafundó? Bambu, é certo, não faltaria. Digo usou os dedos magros e pequeninos para abrir caminho entre os vãos da mochila de escola. Estavam lá, um a um, os ingredientes essenciais àquele sonho.

Maximiliano desabou em desassossego. Bateu-lhe a lembrança, úmida ainda, dos 8, 9 anos. Ele posto diante de sua primeira obra de engenharia: fazer, ele mesmo, um papagaio. Mais que isso: cuidar de produzir um que ganhasse os ares. Pediu à irmã que preparasse a goma doméstica. E se aproveitou do material do irmão, exímio artesão de pipas. Aquilo rendeu-lhe nada além de um reles sureco, destes sem a extensão do rabicho, e a prova de fogo capital: dar-lhe uma razão para existir.

As imagens lhe são frescas, como fosse há pouco. Se recorda de ter conferido os remendos de linhas, a flexão da taquara, e partido. Adentrou a rua em poucos passos, estimou as distâncias, como via tantos outros meninos fazerem, e se deixou correr, achando que já era velho namorado das correntes de ar. Qual nada. Absoluto fiasco. Uma série de rodopios desengonçados, uma sucessão de mergulhos suicidas contra o chão. A raiva. A frustração. A desistência. Tudo se desintegrando.

Nunca, nunca mais, desde então, pusera as mãos naquele ofício, porque seria ramo para outras pessoas. Não para ele. Inábil à quintessência. Não contava, claro, com o doce e desafiador curso da vida. Eram ele e o filho, agora, como diante de uma esfinge. Maximiliano custando a compreender como aquela pergunta sem resposta viera bater a sua porta quase 40 anos mais tarde. E Digo sem crer como um homem, àquela altura da vida, seria incapaz de moldar-lhe um mísero papagaio.

Ficaram se olhando, até que o pai esboçou o primeiro gesto. Se distanciou momentaneamente, pôs-se na pele de planadores, e viu se distanciar o universo em que Platão, Sócrates e outros discípulos eram ímpares. Mirou tão-somente o significado olímpico das pequenas coisas. Foi construindo, o filho ajudando à sua maneira, o que não passaria de uma boa intenção, se o assunto era imitar os pássaros. Rogou, e os ventos ajudaram. Naquela tarde de agosto, eram eles, dois meninos na contramão da brisa, as silhuetas se misturando. E o papagaio, tosco, remendado, canhestro, ganhando os céus. Reinando. À sua forma, reinando. Feito fosse um gol salvador no apagar das luzes.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


4 comentários:

  1. Conto maravilhoso! Pai e filho comungam, afinal, da mesma empresa: voam juntos, asas de igual envergadura. De minha parte, tb fiz pipas (aqui, diz-se assim) que nada voavam, de início. Com a persistência, fui longe. Parabéns, Murta!

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  2. Habilidade para coisas complexas e medo das coisas simples. Cada um de nós impõe limites a nós mesmos,nem sempre adequados. Um filho levou o pai a um passado que ele queria rever, embora tivesse medo. Enfim, o voo seguro do papagaio trouxe-lhe novamente alegria e um sentimento de realização, já que em tempo idos não foi capaz de completar o sonho de voar. Também quero relizar esse desejo de voltar ao ponto em que alguma coisa não ficou bem resolvida, e resolvê-la, nem que seja metaforicamente.

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  3. Que texto delicado e doce. Eu também nunca consegui fazer uma Pipa ou Papagaio. Na verdade, quando tentei empinar já fui um fracasso - isso com cerca de 7 anos de idade. Não tenho vontade de tentar de novo. Nunca tive. E nem sei como seria se um dia um filho meu fizesse pedidos desse tipo. Nem sei como seria. Abraço, Murta.

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  4. É que, no fundo, o que a gente quer da vida é vento bom. E nada mais. Abraços

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