Sujeito Zero (20)
*
Por Sergio Vilas Boas
O
índio Quanaduck – recepcionista
do Whaler’s – anuncia a chegada do tofu com legumes que ela havia
pedido. Alma autoriza a entrega da comida. Surpreende-a a contente
fisionomia de um chinês idoso. Desculpe o atraso, ele deve ter dito.
A caixinha de tofu com legumes chega em 45 minutos, não em trinta.
Está bem, não tem problema, senhor. A fome geralmente encobre
rigores e detalhes.
O
velho chinês (coreano, vietnamita, malásio ou indonésio?) veste
uma jaqueta impermeável, calça xadrez de flanela, botas de couro
cru, um grotesco gorro de pele artificial com proteção para os
ouvidos e óculos como os de John Lenon. Entrega com evidente alegria
as duas caixinhas com comida (a de arroz integral estava incluída no
preço). Alma está tão faminta e aérea que paga cinco dólares
além da conta. O chinês devolve, ela recusa. Obter comida naquelas
circunstâncias parecia uma bênção.
Redondamente
agradecido, o chinês guarda os cinco dólares em um bolso da
jaqueta, o restante no outro. Abotoa as abas flácidas do gorro e se
despede. Alma vai à janela. O
céu está limpo. O chão, branco e espesso.
Ela acompanha os movimentos do chinês lá embaixo. Ele empurra sua
bicicleta com dificuldade. Alma sorri pela primeira vez desde que
partiu de Boston com as pernas trêmulas e o batom borrado.
O
chinês afunda os aros da bicicleta na neve fofa, perde o equilíbrio,
desce, carrega a bicicleta nas costas, salta um obstáculo; monta de
novo, cambaleia, atola; e pedala outra vez, procura as trilhas
escavadas pelos caminhões da prefeitura, sobre as quais se
espalharam toneladas de sal grosso. É assim até desaparecer dentro
da onipresença de vinte graus Celsius negativos. Se isto não é
entusiasmo, o que é?
Zapeando
diante da tevê ligada, Alma começa a mastigar avidamente,
contrariando a natureza de seu processo digestivo. Alguns noticiários
ainda se ocupavam da terrível nevasca. As autoridades dos condados
afetados haviam decretado estado de emergência. Auto-estradas
obstruídas, longos congestionamentos, aeroportos fechados, estações
de trem abarrotadas, familiares aconselhados a não enfrentar o
caminho de volta.
Alma
interrompeu a sanha das mandíbulas ao se deparar com imagens ao vivo
na CNN de chamas em Washington D.C., onde um Oldsmobile-bomba havia
explodido próximo à Casa Branca. Como um prisma hipnótico, a tevê
paralisou-a. Por pouco ela desfalecia, pois tinha parcela
considerável de culpa – tanto quanto a maldita nevasca – na
construção daquela notícia totalmente fora de hora. Militantes
imprestáveis, aqueles. Detonaram tudo, menos Little George.
*
Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo
Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br);
vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário
(ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N”
(1997), “Biografias
& Biógrafos”
(2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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