Estilo
literário e estilo científico
*
Por Álvaro Lins
Estudo
da obra de Roquette-Pinto
Antes
de tocarmos em cheio na obra do cientista, vejamos em que sentido, ou
em que proporção, o autor de Rondôniapertence
aos quadros da Literatura, como sabemos que pertence aos da Ciência.
Questão fundamental, esta, não só para a avaliação do conjunto
estrutural da personalidade e da obra de Roquette-Pinto, como também
a jeito de uma operação de esclarecimento prévio, sem o que
poderíamos mergulhar todos, a este respeito, num equívoco de humor
involuntário.
De
Roquette-Pinto sabe-se que foi, antes de tudo, um espírito
científico posto face a face com a natureza. Sabe-se também, por
outro lado, que é mais difícil escrever uma bela página literária
do que realizar uma boa experiência de laboratório ou de campo.
Desde muito tempo, talvez, porém desde Renan com certeza, sobretudo
em L’avenir
de la science,
pôs-se em causa o problema das diferenciações entre estilo
literário e estilo científico, como as linguagens de dois mundos,
às vezes comunicantes, distintos quando conceituados em argumentos
de absoluto.
[...]
Afigura-se-me
que a forma literária de Roquette-Pinto ultrapassou com vantagem,
esteticamente, o esquematismo de tão rígidas teorizações [de René
Wellek e Austin Warren]; e que ele atravessou tais fronteiras, entre
a linguagem literária e a linguagem científica, por efeito da mesma
ciência íntima de escritor e de artista do seu colega, o polígrafo
João Ribeiro, que via as fronteiras como prisões, esquivando-as com
ligeireza, graça e bom gosto.
Recuso-me
a aceitar, porém, que Roquette-Pinto venha a figurar na Literatura
pelos seus contos de Samambaia (1934),
volume em que, na primeira parte, se pode valorizar apenas alguma
página naturalista ou impressionista, como o admirável retrato de
seu avô, em que tanto revelou do seu próprio caráter forte e
bondade sensível, produzindo-o como se ele mesmo estivesse a
confessar-se nessa evocação, feita em largos traços, do velho João
Roquette. Ou, na segunda parte, algumas páginas de observação ou
reflexão do velho Duarte, teceduras e verídicas, conquanto mal
disfarçado o personagem em figura inventada.
Dos
contos de Samambaia, em conjunto, tudo me parece mal nascido e
mal-acabado. Mero divertimento de cientista. Em verdade, sobre o
mestre Roquette-Pinto não baixara o dom da plástica imaginação
romanesca; e nele não habitava a arte de ficção: arte figurativa
por excelência. Figurativa, talvez, não no mesmo grau da pintura e
da escultura, que nos facultam uma visualidade direta; figurativa sob
outro prisma, de maneira bem mais completa e perfeita, porque a
estátua e o quadro exibem a figura numa só posição, enquanto o
personagem da arte do conto ou do romance pode mostrar-se em
numerosos desdobramentos de fisionomias físicas e estados
psicológicos. Esta arte da ficção não seria o forte do grande
Roquette-Pinto. Tampouco seria qualquer espécie de literatura pura.
Acredito fácil a verificação de que nas diversas vezes, e fiz
anotações neste sentido, folgando apenas por não haverem sido
muito numerosas, em que o mestre deletreia abstratamente, sem ponto
de apoio na realidade, como plumitivo de belas-letras, ou incursiona
num terreno de devaneios largados e abandonos emocionais para alguma
formulação puramente literária: então, o resultado, no geral, é
de qualidade secundária, senão constrangedora. Seja, isto, em
certas passagens de eloquência discutível, portanto desajustada à
grandeza do sábio, seja em alguns daqueles seus estados, raros ainda
bem, de sentimentalidade indiscreta, a encobrir-se a espaços o que é
ainda pior num verbalismo com tendência para o sublime ou o bonito
de lantejoula. Tudo de gosto duvidoso ou indiscutível mau gosto.
***
Ora,
se o homem de ciência Roquette-Pinto pertence aos quadros da
Literatura, e é evidente que sim, isto se deve exclusivamente ao
estilo de arte literária com que ele exprimiu ou revelou a tão
variada temática das suas obras. Não é pelos contos, nem pelos
versos, que se encontra Roquette-Pinto na bem-aventurança do Reino
das Letras onde também ocorre que muitos são os chamados e poucos
os escolhidos, mas graças à forma de expressão, ao estilo
literário, ao ritmo do seu mundo interior quando exteriorizado para
ordenar esteticamente a temática do cientista e as ideias positivas
do pensador.
Está
nos quadros da Literatura, não apenas nos da Ciência, pela frase
vibrátil, pela composição esteticamente proporcionada de tantos
capítulos de Seixos
rolados e Ensaios
brasilianos;
ou, entre as obras menores, da aula “Conceito atual da vida”
(1920), do guia das coleções do Museu Nacional sob o
título Antropologia (1915)
das conferências sobre Goethe (1932), Leopardi (1942) e
Saint-Hilaire (1953). Está nos quadros da Literatura, pela dúctil
forma expositiva e dignidade de expressão verbal do pensamento, em
livro de maturidade suprema como Ensaios
de antropologia brasiliana (1933).
Está nos quadros da Literatura, principalmente, pela forte
construção estrutural de Rondônia (1916),
em que se alternam as páginas de ascética objetividade do cientista
e as páginas de emotividade do artista tragadas com beleza formal.
Fixemos
um exemplo pelo avesso: esta mesma obra Rondônia,
e com este mesmo aparelhamento científico, se fora mal escrita, ou
construída aleijadamente, não seria literatura: seria ciência,
apenas ciência. Pois é pelo estilo que um autor e uma obra se
instalam na Literatura. O estilo: selo e sinal de sua nobreza. Não o
esqueçamos: é pelo estilo, em primeiro lugar, que um ser se
realiza, se fixa e permanece. E não só o homem; as vidas coletivas
também. Sim, pelo estilo é que as civilizações subsistem; e
prolongam-se em outras idades. Representa, assim, a arte estilística
um elemento de perpetuidade e imortalidade dos seres; aquele que mais
seguramente oferece uma garantia de sobrevivência.
Aliás,
as características do estilo de Roquette-Pinto não são o refinado
esteticismo, nem mesmo a beleza depurada em requinte verbal.
Caracterizam-no outros valores: a medida, a clareza, o equilíbrio, a
ordem; e o emprego preciso dos vocábulos, habituado que se achava
desde muito à construção dos períodos curtos, claros, diretos,
ainda isto representando, no seu caso, um recurso didático de
professor em permanente comunicação escrita com o publico.
Não
obstante, como na conferência sobre Saint-Hilaire, ou como numa das
primeiras páginas de Rondônia,
que mais adiante transcreverei, situando-a entre as mais fortes e
nítidas já escritas por um homem de ciência no Brasil, utiliza-se
às vezes Roquette-Pinto das frases longas, em que, através de
incidências coleantes, pontuações abundantes e sinuosidades
sintáticas, o pensamento se desenrola igualmente, por entre essas
mesmas sutilezas e habilidades, para operar uma penetração aguda ou
duradoura no espírito do leitor, repercutindo mais fundo em
sugestões emocionais, infiltrando-se em nuanças psicológicas ou
sociológicas.
***
E
aqui está como se me afigura a beleza difícil, rara, contudo sempre
necessária, de uma frase longa e desdobrada: que ela nos transmita,
afinal, a imagem de um corpo a avançar, ou a deslizar, com a
lentidão, a elegância e a dignidade de um cisne sobre as águas.
Acrescente-se, em consequência, que uma lição musical do estilo
consiste em criar ou desenvolver, num processo quase imperceptível
de interioridade, um ritmo harmônico por efeito do jogo entre frases
longas e curtas, lentas e apressadas, desde que haja, no escritor, a
ciência literária como a tinha, em música, César Frank capaz de
justapor e imbricar um motivo-andante e um motivo-alegro.
*
Professor e crítico literário, membro da Academia Brasileira de
Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário