Um
traço angelical passeia à face de Luna
* Por Eduardo Murta
Luna descrê por inteiro do belo. Julga mero artifício de novela, jogo de passarelas. E nem nota que o destino acabou juntando peças desafiadoras diante dela, espécie de provação. Havia lhe esculpido em desenho de boneca, trancinhas doces, riso aveludado, jeito de olhar que a aproximava das deusas. Feito exibisse duas pérolas flutuando às margens do rosto.
Ser vista como rainha, então, tinha lá seus encantos. A seda com que lhe vestiam, da China, o perfume com que lhe incensavam, da França, o leite em que lhe mergulhavam no banho, o de cabras nobres. Tudo alargando o amálgama do contentamento. Sapatinhos em fivelas douradas, laços de fita que lembravam anjinhos barrocos. Faziam assim porque a amavam, foi escutando por anos a fio.
Nada de sair sem roupa de festa. Nada de andar com os pés no chão – micróbios, gripe, espinhos traiçoeiros. Se espirrasse, saúde!!! Putz!!! Chegara ao esgarçamento a forma como a tratavam. Bibelô em redoma de vidro. A ponto de dormir sob filó, mantendo o sangue intocado à sanha de pernilongos, e beber chá de rosas, das brancas, a que o hálito remetesse a primavera de jardins.
Foi relembrando aqueles cheiros, anos à frente, que descobriu que a vida, no fundo, tinha mais ares de madrasta que de madrinha. As primeiras notas na escola resvalavam a imperfeição, não sendo as máximas. E, abrindo as páginas de Internet, mundo afora, foi dar com meninas tão mais belas que ela. Julgou que tantos, além dos espelhos, haviam lhe contado apenas parte da história.
Não era única. Nem soberana. Sequer princesa. Reforçou a convicção debutando nas festas, solenemente preterida por Prieto. Jamais fora apresentada, até ali, a equações que não a elegessem como fator determinante. Esfacelou-se em angústia, porque, na conta dos pais, se todos os caminhos levavam a Roma, Roma era ela. Mais ninguém. Da noite para o dia, descobriu-se miúda, uma Santo Antônio da Jacutinga.
Endoideceu. Se aquilo era um quebra-cabeças, carecia desconstruí-lo junção a junção e refazê-lo do zero. A interrogação roçando-lhe, em saber exatamente por onde começar. Na ansiedade adolescente, destemperou-se na comida. Passou a consumir potes de sorvete madrugadas adentro. Garrafas de refrigerante e saquinhos de batata frita escondidos sob o travesseiro. Viu as formas dos braços, pernas, o estofo da barriga se pondo redondos. Até papa ganhou.
E passou a trancar a porta do quarto em chaves de sete segredos. Assumiu humor de conchas envergonhadas. Depois, retrocedeu, num giro de 180 graus. Inibiu o apetite. Bulimia, anorexia. Empalitou-se. Botou roupas coloridas. Vestes negras. Maquiagem vampiresca. Festas sem hora para acabar. Encharcou-se em doses moderadas, depois pesadas, de álcool. E, muito prazer, drogas leves. Viajou. À máxima de que a vida havia sido feita para ser vivida e que, ato inaugural, era ela quem tomava as rédeas agora.
Ou presumia. No emaranhado de chuvas deste setembro, é ela lá ao extremo da Praça do Papa. O enevoado da manhã deixando transparecer pouco do rosto, mas nota-se que já perdeu um dente. O canino, à esquerda. Síntese mais bem acabada das imperfeições.
Sorri meio desconexa para o
vendedor de cocos, ao pechinchar, pergunta se crê em anjos. Ele ,
desconjuntado, responde que sim, e que neles depositava fé.
Algum recado para Deus? Ele, incrédulo, diz que não. E a vê se afastar de mansinho, tomar impulso, e ganhar ares de pluma, até sumir, mansa, por sobre o dorso da Serra do Curral. Creiam, jamais vira algo tão belo.
Algum recado para Deus? Ele, incrédulo, diz que não. E a vê se afastar de mansinho, tomar impulso, e ganhar ares de pluma, até sumir, mansa, por sobre o dorso da Serra do Curral. Creiam, jamais vira algo tão belo.
* Jornalista,
autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de
2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas
condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos.
Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve
passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de
Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais
aplaudidos do Literário.
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