segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Acima de tudo


* Por Daniel Santos

No cenário da soberba, a seda das togas cicia. O magnífico juiz, alheio à humana ladradura, pretende-se modelar ou mais que modelar, com o cenho amarrotado como o pergaminho dos mais antigos testamentos.

Nada a ele se ombreia nem ninguém ousa tal estatura; muito menos o réu, que arriado de expiações, lhe serve de perfeito contraponto. E, então, o juiz cresce, cresce mais e mais, em virtude de incontroláveis impulsos.

Quer alcançar a Lei. Não! Mais que isso: quer levitar acima dela. E o arco de sua sobrancelha salta sobre as demais pretensões. Já nem é mais juiz, mas uma potestade, um cânone, algo assim de tal grandeza.

O impoluto enfuna-se de vaidades e atinge as nuvens quando  interpreta a Lei com o maior rigor possível, como se ela não se aplicasse a homens pífios e perecíveis. O impoluto quer apenas mostrar-se impoluto.

Tanta austeridade assusta, mas ele expande ainda mais seu vulto,  supera as nuvens, sente-se no paraíso. Ali encontra quem aguarda os soberbos. Impossível recuar. E o magnífico cai nas boas graças de satã!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.


Um comentário:

  1. Já vou imaginando de quem se trata, o tal juiz. E volto ao passado, ao ler a palavra 'impoluto". A minha mãe a usava sempre. Mostra sem revelar e o mistério torna a leitura ainda mais marcante e inesquecível. Sua receita dos cinco parágrafos alcançou, afinal, a perfeição, Daniel. Parabéns!

    ResponderExcluir