segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Abraço da quimera

* Por Daniel Santos

Ah, que saudade de quando era rei e tinha o colo das primas! À minha volta, os dias transcorriam majestosos, porque viam importância em tudo o que eu fazia. Até o cocô durinho no penico maravilhava a todos.

E os banhos! Tiravam-me da bacia de água morna e rápido me envolviam em toalhas tão felpudas que equivaliam ao abraço da quimera. E logo fechavam janelas para que a corrente de ar não me constipasse.

Tudo em mim preocupava, e se fazia anos... Ah, os aniversários da minha infância!  A festa começava de véspera, quando as tias faziam o bolo mais lindo do mundo e me davam a colher de pau para lamber.

A vida pedregosa, que eu ainda não sabia pedregosa, dissolvia-se em minha boca em colheradas de nata, chocolate, caramelo... E se picasse o dedo numa farpa, as velhas largavam os aventais para me socorrer.

Um beijinho, a dor passava. E tudo passou rápido como num sonho. Logo, criava buço e tinha um chute de invejar os outros garnizés. Hoje, nem isso. Restou a lembrança de quando era rei e tinha o colo das primas.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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