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Um tiro a esmo corta os céus da cidade
* Por Eduardo Murta
Maria chora em jeito tão copioso, que chega a definhar-lhe a alma. Um pouco mais, e soluçaria o coração ali mesmo, no centro da vila, aos 15 para o meio-dia daquela quarta-feira. A ela importam nada as pernas desconjuntadas, sobre as quais arqueia, o decote que revela a anatomia cansada de seu colo, inda que nova. Ou a multidão à volta, fazendo papel de plateia a sua tragédia particular. Insensível, que sequer estende-lhe um lenço. Observa, muda, o choro que parte seu rosto em duas fronteiras decididamente amargas.
Não sabe ela, tampouco o sabe Marina, mas há um quê de tragissemelhança em suas histórias. À margem da Lagoa da Pampulha, Marina, uniforme escolar, pranteando num sofrendo que lhe desidrata o espírito. Ouve as sirenes ao longe, sem mover um só músculo, porque já não alimentava esperanças. Aquilo era obra sem conserto. Em lugar de clamar por socorro, põe o queixo em trêmula convulsão. O faz por misericórdia.
Ambas choram a perda do irmão. Retrocedam os ponteiros a um março qualquer de 2 mil e tal, que lá estarão os dois meninos. Um, Pedro. Outro, João. Notem Pedro, pequenino, nu, pelas vielas do Alto Vera Cruz. Treinado, desde que fizera as primeiras curvas no útero da mãe, a buscar refúgio em casa ao menor sinal de anormalidade. Ainda que visse lindeza nos disparos de fuzis riscando o céu, dando com as outras margens do velho Arrudas.
E agora vislumbrem João. As bochechas alimentando a fantasia de que nascera com dois chuchus à boca. Também correra pelado pelas ruas estreitas do Jaraguá. Solto e feliz. Mas sob recomendação severa, já cedinho, de que não se abrisse a estranhos. Nem mesmo aos que falassem sobre aviões, flutuando mágicos no horizonte do bairro e no coração daquele menino. Ou dos clarões transformando a abóboda ao redor do Mineirão numa festa que desafiava a melancolia paquidérmica dos domingos.
Pedro tem pouco além da roupa do corpo. Um sapato a ponto de furar. Dois brinquedos - uma bola vazia, o boneco gasto de um herói já aposentado pela tevê - e a gata Florzinha. Se despede deles e da mãe naquela manhã, beijos molhados, em que suas mãos pequeninas encontram as de Maria. Irmã, anjo da guarda, no leva e traz para a escolinha. A merenda de cantina já soando como um banquete, haveria de se deslumbrar com a sobremesa do dia. E embrulhá-la como quem lustra o condão de uma fada-madrinha.
Vejam João também no rumo da escola. Partilhou o café com os pais, se maravilhou com os desenhos dos canais a cabo nos minutos finais à espera do especial. E prometeu passeio no final da tarde a Ximbica, vira-latas da família. São seus dedos em miniatura se envolvendo nos de Marina. Irmã, sombra-protetora. O grupo que os acolherá fica logo ali, duas quadras acima da Lagoa da Pampulha. Nos metros finais, desembarcavam antes, para seguir namorando contornos do espelho d´água, voos de garças. É o que fazem neste instante.
Até que seus destinos, por tragissemelhança, se encontrem com os de Maria e Pedro. É Maria, percebam, bem ao meio da vila, junto ao irmão. Chora a bala perdida. Soluça a dor como um dinossauro órfão. Achava que leis, terrenas e divinas, careciam de proteger crianças por inteiro. Afastá-las de desamparo qualquer que fosse. Mais que para Pedro, a ela era tudo como um sonho. Aos 8 anos completados, poder deixar, pela primeira vez, que balas de chocolate dissolvessem plenas em sua boca. Se o irmão perdera o presente de Páscoa da escola, chorava pelo desejo que se convertera assim em nada, feito lampejos de um tiro de fuzil riscando os ares do lugar.
Mas Marina, amparando a cabeça de João, tem a matéria da dor viva às mãos. Sente o calor do sangue assomar-se-lhe à pele branca. Ouvira, primeiro, o estampido. Vira as garças debandando, em seguida. O irmão caindo-lhe aos pés. Ele mira agora nela a face terna, tom de adeus, e deixa que os olhos de menino desviem, até darem com o avião cruzando o horizonte da Pampulha. Lá, Pedro se põe. Quer tomar o vento norte, sem planos de voo, sem aeroportos. Sem escalas em canto algum. Como um tiro a esmo cortando os céus da cidade.
* Por Eduardo Murta
Maria chora em jeito tão copioso, que chega a definhar-lhe a alma. Um pouco mais, e soluçaria o coração ali mesmo, no centro da vila, aos 15 para o meio-dia daquela quarta-feira. A ela importam nada as pernas desconjuntadas, sobre as quais arqueia, o decote que revela a anatomia cansada de seu colo, inda que nova. Ou a multidão à volta, fazendo papel de plateia a sua tragédia particular. Insensível, que sequer estende-lhe um lenço. Observa, muda, o choro que parte seu rosto em duas fronteiras decididamente amargas.
Não sabe ela, tampouco o sabe Marina, mas há um quê de tragissemelhança em suas histórias. À margem da Lagoa da Pampulha, Marina, uniforme escolar, pranteando num sofrendo que lhe desidrata o espírito. Ouve as sirenes ao longe, sem mover um só músculo, porque já não alimentava esperanças. Aquilo era obra sem conserto. Em lugar de clamar por socorro, põe o queixo em trêmula convulsão. O faz por misericórdia.
Ambas choram a perda do irmão. Retrocedam os ponteiros a um março qualquer de 2 mil e tal, que lá estarão os dois meninos. Um, Pedro. Outro, João. Notem Pedro, pequenino, nu, pelas vielas do Alto Vera Cruz. Treinado, desde que fizera as primeiras curvas no útero da mãe, a buscar refúgio em casa ao menor sinal de anormalidade. Ainda que visse lindeza nos disparos de fuzis riscando o céu, dando com as outras margens do velho Arrudas.
E agora vislumbrem João. As bochechas alimentando a fantasia de que nascera com dois chuchus à boca. Também correra pelado pelas ruas estreitas do Jaraguá. Solto e feliz. Mas sob recomendação severa, já cedinho, de que não se abrisse a estranhos. Nem mesmo aos que falassem sobre aviões, flutuando mágicos no horizonte do bairro e no coração daquele menino. Ou dos clarões transformando a abóboda ao redor do Mineirão numa festa que desafiava a melancolia paquidérmica dos domingos.
Pedro tem pouco além da roupa do corpo. Um sapato a ponto de furar. Dois brinquedos - uma bola vazia, o boneco gasto de um herói já aposentado pela tevê - e a gata Florzinha. Se despede deles e da mãe naquela manhã, beijos molhados, em que suas mãos pequeninas encontram as de Maria. Irmã, anjo da guarda, no leva e traz para a escolinha. A merenda de cantina já soando como um banquete, haveria de se deslumbrar com a sobremesa do dia. E embrulhá-la como quem lustra o condão de uma fada-madrinha.
Vejam João também no rumo da escola. Partilhou o café com os pais, se maravilhou com os desenhos dos canais a cabo nos minutos finais à espera do especial. E prometeu passeio no final da tarde a Ximbica, vira-latas da família. São seus dedos em miniatura se envolvendo nos de Marina. Irmã, sombra-protetora. O grupo que os acolherá fica logo ali, duas quadras acima da Lagoa da Pampulha. Nos metros finais, desembarcavam antes, para seguir namorando contornos do espelho d´água, voos de garças. É o que fazem neste instante.
Até que seus destinos, por tragissemelhança, se encontrem com os de Maria e Pedro. É Maria, percebam, bem ao meio da vila, junto ao irmão. Chora a bala perdida. Soluça a dor como um dinossauro órfão. Achava que leis, terrenas e divinas, careciam de proteger crianças por inteiro. Afastá-las de desamparo qualquer que fosse. Mais que para Pedro, a ela era tudo como um sonho. Aos 8 anos completados, poder deixar, pela primeira vez, que balas de chocolate dissolvessem plenas em sua boca. Se o irmão perdera o presente de Páscoa da escola, chorava pelo desejo que se convertera assim em nada, feito lampejos de um tiro de fuzil riscando os ares do lugar.
Mas Marina, amparando a cabeça de João, tem a matéria da dor viva às mãos. Sente o calor do sangue assomar-se-lhe à pele branca. Ouvira, primeiro, o estampido. Vira as garças debandando, em seguida. O irmão caindo-lhe aos pés. Ele mira agora nela a face terna, tom de adeus, e deixa que os olhos de menino desviem, até darem com o avião cruzando o horizonte da Pampulha. Lá, Pedro se põe. Quer tomar o vento norte, sem planos de voo, sem aeroportos. Sem escalas em canto algum. Como um tiro a esmo cortando os céus da cidade.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Gosto por demais de suas histórias e da forma que são contadas. mergulho, imagino, até sofro, como nesse caso.Gosto tanto, mais tanto...
ResponderExcluirQue bom. Me deixa mais feliz saber que cumpro o papel essencial à literatura, que é o de que alguém mergulhe num texto e saia dele impregnado de sentimentos. Valeu. Beijo
ResponderExcluirA metáfora não alivia a tragicidade. O equilíbrio entre o poético e a dor torna-se envolvente.
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