segunda-feira, 8 de março de 2010




Meu pai

* Por Aliene Coutinho

O cheiro de café era meu despertador. O café do meu pai. Pulava da cama, me lavava, vestia rápido o uniforme da escola e ia encontrá-lo na cozinha. Lembranças da infância, repleta de imagens e odores. Café, creme de barbear, pão quentinho. Eu e meu pai. Não, não morávamos sós, havia ainda minha mãe, meus irmãos, mas aquelas primeiras horas da manhã eram apenas nossas. Até o resto da casa acordar, nós já tínhamos colocado a conversa em dia e falado do futuro. Meu pai adorava ouvir meus planos, muitas vezes o vi encher os olhos de lágrimas quando lhe afirmava que seria motivo de orgulho da família. Na verdade, quando dizia “família”, era só pela falta de coragem em dizer que só ele me importava.

Lembro ainda, mas remotamente, das noites de febre que só passavam com os chás feitos por ele, ou das noites de pesadelos aliviadas por suas histórias ou pela permissão em dormir no quarto dele, entre ele e minha mãe. Nessas noites, cheias de monstros e fantasmas me aninhava em suas costas e segurava em seu pijama, como náufrago a um pedaço de madeira em pleno oceano. Meu pai parecia meu avô, era velho desde que me entendi por gente, tinha marcas do tempo e do sofrimento. De tantos anos trabalhados e poucas recompensas. Fora um comerciante de sucesso que aos poucos foi sucumbindo aos vaivens da economia, ou a sua própria maneira de viver: emprestava, sem fiador, e não sabia cobrar.

Mancava de uma perna, seqüela da paralisia infantil, e apoiava-se em uma bengala de madeira para andar. Ele contava que quando ainda engatinhávamos temia entrar em casa e não dar conta de se sustentar caso eu e meus irmãos, também pequenos, corrêssemos para abraçá-lo. Mas, já grande, muitas foram as vezes que sentei em seu colo para contar sobre meu dia e falar da escola. Minhas amiguinhas de infância também partilhavam da convivência com meu pai, que gostava de fazer uma roda em volta da mesa, ou do sofá da sala para contar histórias nos intervalos das reuniões de estudo para as provas. Temiam minha mãe, sempre enérgica e vigilante e adoravam o jeito de falar e de ouvir do meu pai.

Ele só tinha o ginásio, ou parte do ensino fundamental como é chamado hoje, mas tinha uma letra daquelas bem desenhadas e fazia conta como ninguém. Me ajudava no dever de casa, e quando eu já estava no técnico de edificações, tirava as dúvidas dos meus cálculos, e traçava comigo os croquis dos meus projetos. Tudo certinho. Nunca o vi se lamentar da vida, mas o ouvi muitas vezes apostar em mim e em meus irmãos, como todos pais fazem desejando que os filhos sejam melhores que eles.

Era também conhecido pela falta de realidade, queria sempre dar a mesma quantia para as compras do mês. Minha mãe o acusava de ser mão aberta com desconhecidos e extremamente comedido dentro de casa. Ia à missa todos os domingos às sete da manhã e participava de um grupo voluntário para ajudar pessoas mais pobres que nós. Era um leonino nada típico esse meu pai. Parecia ser levado pelas emoções. Garantia que conversava com a mãe já falecida, e assim mantinha contatos com o além. Talvez mais uma de suas histórias que eu nunca soube ao certo.

Nunca soube também onde foi parar sua bengala, nem suas roupas, só sei que numa dessas manhãs de domingo, depois da missa, seu coração não agüentou mais e o levou de mim. Fui eu que, sem choro, escolhi o terno que ele vestiu para ser enterrado, cheia de remorso e arrependimento de ter chegado na noite anterior depois do horário marcado e levado uma bronca. Uma das poucas que levei dele nos meus primeiros 18 anos de vida e a última.

* Jornalista e professora de Telejornalismo

4 comentários:

  1. Lembranças...
    Há dias em que elas estão tão presentes
    que sinto até alguns cheiros.
    Quando ela se foi, enchi minhas gavetas
    com o que restou dela. Já me desfiz de quase tudo.
    Mas guardo em meu coração todas as vezes
    em que nos permitimos dizer "Eu te amo".
    Lindo texto Aliene, obrigado.
    Beijos

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  2. Muito lindo seu texto, Aliene! Como é bom ter boas recordações... beijos!

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  3. Que texto lindo, Aliene. Quanta emoção, quanta saudade.Seu texto me fez lembrar do meu pai. Parabéns!

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  4. Deve ser bom ter um pai assim para lembrar. Emoção pura, e bom pai em sua simplicidade. Amor filial não busca coisas complexas, mas compreensão e isso ele soube dar-lhe na quantidade necessáia. Muito bem!
    Só hoje consegui ler seu texto. Desculpe ter chegado tão atrasada.

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