Tia
Frieda
*
Por Urda Alice Klueger
(Para tia Frieda Klueger
Klein)
Sei
que tia Wanda nasceu em 1909 e tio Erich era um recém-nascido na
grande enchente de 1911. Em algum momento entre essas datas e 1922,
que foi quando nasceu meu pai, veio ao mundo tia Frieda, uma das 3
filhas mulheres dos meus avós Klueger.
Ela
era quase que como uma lenda da minha infância: morava no Rio de
Janeiro e vinha uma vez por ano, normalmente em dezembro. Num país
ainda sem estradas, tenho lembrança do tempo em que vinha de navio,
mas depois vinha de avião, que era um grande luxo para aquela época
(vou me omitir de falar na década em que viajar de avião deixou de
ser luxo, para não ferir suscetibilidades). Sua chegada era uma
festa, por seu sotaque diferente, seus lindos sapatos feitos sob
medida num sapateiro para comportar seus pés grandes e magros e
também pelos presentes que trazia para as sobrinhas, as últimas
novidades da moda, como anáguas de pele de ovo recobertas de renda
de nylon, coisa mais linda, como ninguém aqui pela província ainda
não tinha, sem contar umas inteiramente diferentes balas de coco que
se derretiam na boca, inigualável iguaria. Uma vez quis inovar,
comprou chocolates suíços, mas viu meninas pequenas reclamando:
-
Tia Frieda, e as balas de coco?
Nunca
mais se esqueceu de trazê-las.
No
decorrer da minha vida fui aprendendo a dela: estimulada pela minha
avó, que na juventude vivera experiência semelhante, aos 15 anos
respondeu a um anúncio de jornal, que procurava moças distintas e
trabalhadeiras para serem governantas na então capital do país, e
de Blumenau foi para o Rio de Janeiro, via Itajaí, onde viveu uma
aventura que me encantava: como havia que esperar alguns dias pela
saída do navio em que viajaria, ficou numa hospedagem onde também
estava uma Fraulein Schossland, jovem como ela, e as duas aprontaram
uma arte: quando o cervejeiro parou sua carroça diante da hospedagem
e entrou para saber se se precisava de mercadoria, elas subiram à
carroça e manobraram a mesma até uma outra rua, onde a abandonaram.
Voltaram andando calmamente, a tempo de verem o cervejeiro em
desespero pelo sumiço do seu veículo. Nunca ninguém desconfiou
delas.
Não
deve ter sido fácil seus primeiros tempos no Rio, e ela contava do
seu choro de tristeza nos domingos solitários numa cidade
desconhecida. Mas em algum momento apareceu o príncipe encantado, o
namorado, tio Sebastião Klein, simpático cavalheiro que foi seu
companheiro o resto da vida.
Viviam-se
tempos atrozes, no entanto. Na Europa grassavam as loucuras de Hitler
e o antissemitismo, e o tio Sebastião era judeu, coisa que até
então não me dizia nada, e eles viviam com muito medo do que
poderia vir a acontecer. Quanto mais aprendo a História desse
período, mas vejo que eles tinham razão.
Assim,
esperaram o final da Segunda Guerra para casar-se – ela tinha,
então, 30 anos, e ele, 45. Devido à instabilidade histórica em que
viviam, decidiram não ter filhos. Na casa dos meus pais havia uma
bela fotografia desse casamento, bem como cartões postais e outras
fotografias do Rio e da vida que levavam num lugar chamado Cosme
Velho, que sempre soube que era perto dos Arcos da Lapa, mas aonde
nunca fui: quando, afinal, conheci o Rio, tia Frieda e tio Sebastião
tinham vindo morar em Joinville/SC. As fotos lá de Cosme Velho a
mostram sempre muito elegante, cuidando de uma pequena horta e um
pequeno galinheiro. Sei que ela recebia pedidos para fazer esmeradas
tortas que deve ter sido daquelas que aprendeu na casa da minha avó,
e que tinha seu pé de meia por conta disso.
Tio
Sebastião partiu antes dela, e ela o seguiu um pouco depois,
morrendo daquelas mortes ímpares, quando se sente um primeiro
mal-estar e, sem sofrimento, sai-se voando para outras plagas.
Tenho dela uma foto que minha
mãe usava sobre a mesinha da sala. Acabei de ver, no entanto, que o
tempo e a umidade estão fazendo seu trabalho, e que já há danos na
foto. Achei que era tempo de fotografar a mesma e escrever isto –
como ela era linda! É como uma despedida, e choro um pouco, aqui,
porque o tempo não volta. Nunca poderei esquecer a emoção das
chegadas dela, a cada ano, com suas balas de coco e suas anáguas de
nylon!
Herdei
uma pequena biblioteca que ela tinha, e foi através dela que conheci
Jane Eyre! Quem diria que uma das minhas tias lia romances de tal
quilate!
Sertão
da Enseada de Brito, 25 de agosto de 2018.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e cinco livros (o 25º lançado em maio de
2018), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições),
“No tempo das tangerinas” (12 edições) e “No tempo da Magia”.
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