Aryon
Rodrigues e a farofa de banana
* Por
José Ribamar Bessa Freire
A última vez que vi
Aryon Rodrigues foi em 2 de maio de 2013 numa sala da Universidade de Brasília
(UnB), quando não sei por que cargas d'água lembramos de uma farofa de banana
compartilhada havia muitos anos. Eu ia dar uma aula filmada por Renato Barbieri
para o documentário A Revolta da Cabanagem, com roteiro do historiador Victor
Leonardi. O tema era as línguas faladas no séc. XIX pelos cabanos. De repente,
chega Aryon carregando seus quase 88 anos, seguido por jovens pesquisadores do
Laboratório de Línguas Indígenas. Veio assistir minha aula.
Confesso que me senti
como aquele obscuro vigário de periferia convidado a celebrar missa para o
papa: prestigiado, mas inseguro. Só consegui rezar a missa porque a farofa de
banana evocada por Aryon me encorajou, lembrando o que acontecera quando o vi
pela primeira vez. Foi no final de 1983, em Manaus, por onde ele passava em
missão de consultoria ao INPA - Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Eu
era professor da Universidade Federal do Amazonas. Ele, o papa da linguística
indígena, pontificava no Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP.
Minha amiga Berta
Ribeiro, antropóloga, que o acompanhava, me telefonou:
- Aryon está aqui, leu
Ameríndia e quer conversar contigo.
Ameríndia é uma revista
de etnolinguística vinculada à Universidade de Paris VIII, que havia publicado
artigo - Da ´fala boa´ ao português na Amazônia brasileira - onde analiso a
trajetória histórica das línguas na região e discuto como e quando nós,
amazonenses, começamos a falar português, bem como o que aconteceu com as
línguas indígenas. O artigo atraiu a atenção muito mais dos linguistas e dos
antropólogos do que dos historiadores.
Matrinxã ao forno
Marcamos um jantar no
restaurante Panorama, na Baixa da Égua, no Educandos, que era modesto, mas
tinha uma peixada supimpa e vista para o rio. Aryon - logo descobri - era um
bom garfo, gostava de saborear peixes amazônicos. Ficou encantado com um
inoubliable matrinxã, de carne firme e rosada, preparado em vinho branco e suco
de limão, assado no forno e recheado com farofa de banana pacovan. Após a
mousse de cupuaçu, retirou um exemplar da revista, todo riscado a lápis, e
comentou página por página, me bombardeando com uma série de questões.
Entre as dezenas de
observações, advertiu que no período colonial a língua geral amazônica não pode
ser chamada de Nheengatu, porque essa denominação só surgirá no séc. XIX.
Mostrou as limitações de uma fonte que usei para a classificação de línguas,
sugeriu outras e fez crítica tão detalhada e rigorosa de cada tópico do artigo
que eu, embora agradecido por atrair sua atenção, ao final brinquei:
- O senhor desmontou o
artigo. Não sobrou nada, só espinhas, como o matrinxã.
Generoso, Aryon
embarcou na provocação e falou aquilo que eu queria tanto ouvir: "A farofa
do recheio pode ser melhor temperada, mas o filé é honrado e suculento".
Massageou meu ego, destacou a documentação usada, a originalidade e o
pioneirismo do trabalho e me incentivou a continuar pesquisando, o que fiz,
publicando, em 2004, o livro Rio Babel - a História das línguas na Amazônia, com
um prefácio escrito por ele.
Esse era o Aryon. Na
época, já era Aryon Dall'Igna Rodrigues, o renomado pesquisador, reconhecido
nacional e internacionalmente, com trajetória de pesquisa iniciada em Curitiba,
sua cidade natal, em 1940, ainda no ginásio, quando ouviu algumas palavras em
guarani. Foi aí que, ainda de calças curtas, escreveu seu primeiro artigo sobre
o tupi, publicado no jornalzinho do Grêmio Estudantil.
Google das línguas
Daí em diante, não
parou mais de pesquisar. Peregrinou em busca de línguas indígenas por aldeias e
universidades, num diálogo ininterrupto com índios, a quem ouvia atentamente, e
com pesquisadores, para cuja formação contribuiu. Deu aulas como leitor na
Universidade de Hamburgo, na Alemanha, que lhe conferiu o título de doutor
(1959) pela tese defendida sobre a fonologia do Tupinambá. Chefiou, então, o
Departamento de Línguas da Universidade Federal do Paraná, de onde saiu,
convidado por Darcy Ribeiro, para organizar a pós-graduação em linguística na
UnB.
Depois do golpe militar
de 1964, Aryon pediu seu desligamento da UnB, em solidariedade aos colegas
demitidos. Foi cantar em outros terreiros, como professor na Universidade da
República do Uruguai, chamado por Darcy, e na Universidade Nacional Autônoma do
México, além de se vincular ao Programa de Pós-Graduação do Setor de
Linguística da UFRJ, no Museu Nacional. Na Unicamp, durante quinze anos
(1973-1988), formou pesquisadores, além de ter sido professor visitante na
Universidade de Leiden, Holanda e na Universidade da Califórnia.
Ali onde tem fumaça,
tem fogo. Ali por onde passou Aryon, se estuda línguas indígenas. É possível
localizar instituições interessadas no tema, seguindo o roteiro percorrido por
ele, que sabia tudo, ensinava tudo. Ele era o google das línguas indígenas, mas
um google criterioso, que ia além dos textos, porque conhecia pessoalmente seus
autores.
Fiz um "curso
intensivo" com Aryon, ainda nos anos 1980, quando de retorno a Manaus,
ficou hospedado em minha casa. Eram aulas permanentes. Foi quando manifestei
vontade de conhecer a biografia de Cestmir Loukota (1895-1966), o pesquisador
tcheco que também dedicou sua vida a estudar as classificações das línguas
indígenas da América do Sul e cujo livro é uma espécie de guia de fontes para a
história das línguas.
- Convivi com Loukotka
no final dos anos 1950, quando ele visitou o Brasil e pesquisou a língua dos
índios Xetá na Serra dos Dourados - contou Aryon, informando sobre os trabalhos
do tcheco no Museu de Etnografia de Praga. A intimidade era tanta, que só não
chamou Loukotka de Lulu, porque era muito formal. Além de outros babados,
fiquei sabendo que Loukotka era formado em Administração e havia trabalhado nos
Correios.
Na pista
Ao longo de mais de
setenta anos de vida academicamente produtiva, Aryon realizou estudos
comparativos de línguas indígenas, identificou documentação histórica nos
arquivos e formulou hipóteses consistentes do relacionamento genético,
envolvendo os troncos Tupi, Macro-Jê e Karib. Costumava recusar o termo
"moribundas" para designar o estado das quase 200 línguas indígenas
faladas atualmente no Brasil, porque isso seria admitir que estão morrendo.
Preferia chamá-las de "anêmicas", que podem ser revitalizadas com
sangue novo.
No sábado (26/4), o
corpo de Aryon Dall'Igna Rodrigues (1925-2014) foi cremado no Cemitério de
Valparaíso, em Goiás. Divorciado, pai de três filhos, deixou mais de 150
trabalhos científicos, muita saudade entre os pesquisadores e alunos que
conviveram com ele e a lembrança de um mantrinxã recheado com farofa de banana
que décadas depois ainda provocava um brilho alegre no olhinhos azuis de quem
era amante da vida.
Aryon Rodrigues
combateu o bom combate e encerrou a carreira resistindo teimosamente na defesa
da utopia. Mesmo aposentado, continuou trabalhando de 1995 até 2014 no
Laboratório de Línguas Indígenas, sem qualquer ônus para a UnB. Morreu como
Ayrton Senna: na pista. O Brasil e os índios muito lhe devem.
P.S. - Com muito pesar,
comunico que faleceu na sexta-feira (02/05) às 23:30 horas Dom Tomás Balduíno,
91 anos, frade dominicano como Bartolomé de Las Casas e bispo emérito da
Diocese de Goiás. O corpo será velado na igreja São Judas Tadeu, em Goiânia até
domingo, quando será concelebrada a Eucaristia e depois na Catedral, onde será
sepultado na segunda-feira, dia 5, me informa Marlene Moura, sua amiga, que me
acompanhou há dois anos no almoço oferecido a nós por Dom Tomás no convento
onde vivia. Ele participou ativamente do Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), mantendo compromisso radical com
os índios, os sem-terra, os camponeses e os lascados de todo o Brasil. Era um
radical, que sabia negociar: duas qualidades que estão em falta na praça.
Dessas mãos, eu recebo uma hóstia. Para esse santo, eu rezo.
* Jornalista
e historiador
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