domingo, 9 de março de 2014

Vida paralela


* Por Cecília França

Clarice sabia bem o tormento que a amiga vivia por estar apaixonada pelo chefe. Também ela já passara por isso, e não apenas uma vez. A primeira culminara com um feliz casamento; a segunda, com apenas uma noite de amor seguida de abandono de emprego. Aliás, colecionava histórias amorosas de darem inveja em "Júlias" e "Sabrinas" extasiadas de paixão nas páginas dos livros.

E suas reviravoltas profissionais não deixavam a desejar, uma vez que o brilhantismo de seu trabalho sempre vencia os obstáculos, por mais que parecessem intransponíveis. Às vezes, obtinha ajuda de algum inusitado conhecido influente. Os papéis de destaque na empresa eram-lhe reservados sem a menor cerimônia, como que por desejo do destino, fazendo com que se sobressaísse sobre os demais colegas logo nos primeiros dias de trabalho. Realizara seu sonho de escrever e colecionava prêmios e homenagens por seus romances construídos durante as madrugadas.

Enfim, Clarice vivia uma história de sucessos cumulativos. Isso tudo com apenas vinte e cinco anos e relegada ao cotidiano de repórter do interior. Já tivera 50 anos, voltara aos cinco, namorara e se casara com astros, vizinhos e colegas de trabalho. Tivera lindos filhos. Também vivera na Idade Média (coisa que, aliás, acreditava piamente ter sido verídica, espírita que era). Vivia no que outros costumavam classificar como "mundo paralelo".

Por vezes, sua intensa imaginação a preocupava, quando chegava ao cúmulo de confundir realidade com ficção e preferir esta última. No entanto, a apreensão diante do virtualismo de seu mundo não foi bastante para frear suas divagações sem limites que lhe renderam o apelido de "imaginária" e a impediram de construir uma vida real. Era demasiado idealista para concordar que o amor fosse suplantado por outras necessidades humanas.

Clarice viveria seus longos anos pisando em nuvens e sonhando em tempo integral, dedicando, assim, pouca atenção a temas e pessoas realmente determinantes. Quando de sua última morte – da qual não poderia voltar – escreveriam em sua lápide: "Viveu e sonhou muito", a que acrescentaria, em tom solene, um espectador: "mas realizou pouco".


* Jornalista

Nenhum comentário:

Postar um comentário