quinta-feira, 13 de março de 2014

O jeito era rir

* Por Fernando Yanmar Narciso

Podemos afirmar que o Brasil se divide em dois períodos: Antes e depois de 1994. Nesse ano, completamos vinte anos do lançamento do Plano Real, o grande divisor de águas da economia nacional. Em pouco tempo, o monstro incontrolável da inflação mostrou-se possível de ser enfrentado de igual para igual.  Lembra-se de como a pobreza foi assustadora nas décadas anteriores a 1994? Dinheiro, fartura, tudo o que nos parece tão fácil hoje ainda tinha uma distribuição tão injusta como nos tempos da Revolução Industrial. Nada de classe intermediária, ou você sofria ou fazia sofrer. Nessas adversidades, só mesmo o humor podia nos salvar.

Peguemos os comediantes brasileiros, dos clássicos aos mais contemporâneos. Não há um deles que não fizesse críticas ácidas e hilariantes à pobreza e à riqueza. Digo, nossos melhores humoristas costumavam sair de que região do país? Do sertão nordestino, da caatinga, daqueles lugares onde a água encanada e a eletricidade provavelmente só estrearam há uma semana. Onde nunca ouviram falar em internet e o lançamento do primeiro (e único) orelhão teve direito até a fanfarra e um discurso do prefeito. Sol escaldante, chão seco, mandacaru a dar de pau e aquela romaria de gente miserável vagando a esmo como num livro de Graciliano Ramos... Só rindo dos próprios tormentos para conseguir viver ali!

Nos tempos áureos do humor na televisão, era impossível fazer piada se os personagens não morassem num vilarejozinho socado no meio da caatinga ou no morro. Quer dizer, pensem na famosa dupla Primo Pobre e Primo Rico, imortalizados em rádio e TV por Paulo Gracindo e Brandão Filho. Maior analogia à luta de classes não haverá: O parente favelado vinha contar suas agruras e dificuldades ao primo playboy esbanjão da capital, que a princípio se mostrava comovido pelos choros, só para oferecer a ele ou uma ninharia ou o olho da rua. Hilariante, porém agridoce.

Em seus melhores anos, 90% do elenco da Praça da Alegria eram caracterizações de mendigos, pobretões, imigrantes nordestinos, malandros e bandidinhos pé-sujo. Quando aparecia algum personagem rico, era aquele estereótipo de Vera Loyola ou Athayde Patrese, com nojo da pobreza e esfregando seus ouros na cara de Carlos Alberto e seu pai, Manoel. Como dizia o mestre Chico Anysio, brasileiro que se preze tem apenas três problemas, café da manhã, almoço e jantar

Ele criou centenas de personagens, quase todos humildes moradores daquele cafundó chamado Chico City, onde o único residente rico era o prefeito Walfrido Canavieira. Até mesmo Jô Soares criou alguns personagens sem eira nem beira no Viva o Gordo, por mais implausível que parecesse, na época, um pobre gordo. E como não pensar em pobreza= humor sem pensar nos Trapalhões? Didi, o magrelo espertalhão nordestino, Dedé, o otário metido a gostosão, Mussum o carioca cachaceiro do morro e Zacarias, o mineirinho come-quieto.

Por décadas eles transformaram o sofrimento do povo em piadas inesquecíveis. Em 25 anos de show, acho que eles nunca saíram da pindaíba. Lembram daquele filme em que eles viviam na roça, e como nem balde eles tinham, Dedé ordenhou a vaca dentro de uma bota velha? Ou de quando uns bandidos invadiram o barraco de Didi e ficaram com tanta pena da miséria dele que acabaram deixando 300 pilas pra ele? Ou de quando eles eram mendigos e, pra conseguir comida, Didi só precisou imitar o Sarney pro povo jogar uma chuva de verduras em cima deles? Não dava pra não rir!

A conexão entre pobreza e comédia é tão indissociável que o imortal humorista Oscar Pardini, do grupo Café com Bobagem, tinha um quadro na Rede Transamérica na década de 90, chamado “Sintomas de Pobreza” onde, imitando Chiquinho Scarpa, ele lia cartas da audiência listando inúmeras cafonices e “pegações de mal” que só pobre seria capaz de fazer, do naipe de comprar tapete persa pirata e pendurar na parede da sala, juntar a caca do Totó pra adubar as “pranta” e apertar parafuso com faca, porque a chave de fenda foi usada pra calçar a janela.

Agora os tempos são outros... A classe média, os emergentes ou, simplesmente, pobres-ricos tomaram conta do país. A quantidade de miseráveis diminuiu de maneira formidável desde FHC, e com o Bolsa Família, quem nunca teve nada de repente passou a ter “tudo”. O pobre se endivida pra cacete, mas vive melhor que qualquer geração anterior. Nesse contexto, ajudado pelo bom e velho politicamente correto, ficou meio que proibitivo fazer piada com pobreza. No mundo do umbigocentrismo, a pessoa precisa ter “orgulho” de ser pobre e é duramente criticado se tentar rir da própria desgraça.

Personagens clássicos do anedotário nacional como o pinguço vagabundo, o vendeiro ignorante, o morador de rua, o corno manso, o baixinho esperto, o dono de cabaré e a quenga praticamente sumiram das bocas dos humoristas na última década. Há uma coisa muito errada acontecendo quando o contador de causos Zé Lezin da Paraíba, que ficou famoso por contar as tribulações de ser um matuto pé-rapado, não apenas passa a denunciar o sumiço dos matutos como a fazer piada com Shopping Center e telefone celular. Os pobres do Zorra Total, quando aparecem, são mais limpinhos e pasteurizados que os que o governo usa pra gravar propaganda.

Nesse caso, Srª Presidenta, pelo bem do riso, TRATE DE EMPOBRECER O PAÍS DE NOVO!

*Designer e escritor. Sites:

Um comentário:

  1. Esse menino já foi longe demais! Os politicamente corretos vão correr atrás dele para pegar. Eu também, porém para dar-lhe um beijo. Conseguiu fazer graça e agradar. Muito bom!

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