quarta-feira, 12 de março de 2014

“És indigna, malvada, infusada, maltratada, desgraçada, rapariga do Bonfim!” (Elthomar Santoro Júnior)

* Por Mara Narciso

O termo “indignar” está muito presente. Farei um tour por vários temas correlatos, contrariando um amigo que não aprecia este meu jeito de alinhavar o incompatível, misturando coisas, fechando incongruências dentro do mesmo baú. O corpo humano é considerado um sacrário, e a vida um bem sagrado. Tratar o conjunto material e espiritual de forma humanitária deveria ser universal. Mas o mundo joga fora obrigações. Pancadas físicas e mentais são distribuídas para todos os desgostos e indignações.

Dignidade, diz o dicionário Aurélio, é “função graduada, autoridade moral, honestidade, honra, respeitabilidade, decência, decoro, respeito a si mesmo, amor-próprio, brio”. Tal coisa deveria estar presente desde o nascimento até a morte.

Quarenta jovens na faixa dos 18 aos 20 anos estão estudando Anatomia na Escola de Medicina numa ampla sala de piso vermelhão, com grandes janelas abertas para evaporar o formol. Sobre as sete mesas brancas de metal estão sete cadáveres, seis homens e uma mulher mortos há mais de um ano. Quando são retirados do tanque fazem até a pessoa mais indiferente lacrimejar de forma abundante. Estão com boa parte dos seus corpos dissecados, cortados e recosturados com barbante por diversas vezes.

Ouvem-se o barulho de um carro chegando. É um rabecão. O motorista e outro homem descem do automóvel, abrem a parte traseira e de lá retiram um caixão. Entram com ele pela porta lateral, e o colocam sobre uma mesa ao lado dos tanques de formol. Tudo ali cheira morte. Aberto o ataúde simples, vê-se que este indigente, ao contrário dos demais, está vestido com um terno azul marinho, camisa branca, gravata preta e descansa lá dentro. Não tem flores, mas tem as mãos postas. Tiram-no do envoltório de madeira e o colocam sobre uma mesa ao lado. Despem-no, e podem-se ver a sua pele clara, diferente da dos demais, que, tratados no conservante apresentam cor marrom. O corpo nu é então deslocado e submerso no formol, primeiro os pés, depois a cabeça. O som típico de mergulho é ouvido. Os jovens estudantes são testemunhas de como o destino pode brincar com as pessoas, ainda que seja além do momento final, modificando o que seria uma vida, uma morte e um enterro dignos.

No mesmo tema fim da linha, vemos alguém amassar e ferir a pele, gastando o tempo e o colchão caixa-de-ovo durante anos jogado sobre um leito, tendo os olhos abertos estatelados, ausentes, fitando o nada. Às vezes, uma furtiva lágrima brota de um dos olhos e escorre lateralmente até o pescoço. Ninguém põe reparo nisso. Tubo na traqueia, ventilação assistida, alimentação injetada na gastrostomia (buraco no estômago), intermináveis banhos de pano, ano após ano. Viram-no para um lado, viram-no para o outro. Trocam-lhe o fraldão. A família dilacerada está cansada de fingir que espera por um milagre. O custo financeiro deste sofrimento poderia ter um objetivo mais nobre, mas é preciso gastar mais recursos para dar um fim digno a este morto-vivo. Para os que o cercam, isto é morrer com dignidade.

Presídios indignos, imundos, lotados, que não respeitam a condição humana, são a norma. Do lado de fora, outros se deliciam vendo os que erraram amontoados sobre lixo, fezes e doenças, piores do que cães. Crianças e velhos, os mais frágeis na escala, em todo o mundo sucumbem sob condições desumanas. Mulheres torturadas, espancadas e mortas, eis a rotina. Ao mesmo tempo criança estuprada e despedaçada serve de preâmbulo para a próxima atrocidade. O crime hediondo, com cenas da hora do acontecimento (estamos lotados de imagens), são o aperitivo para o que vem depois. Perdemos a capacidade de nos indignar. É natural reclamar pouco diante do permanente noticiário de crimes e guerras. Somos brutos e estúpidos, mas ainda existem pessoas dignas, com bom comportamento e respeito ao próximo. Ainda há quem consiga acolher, compreender e perdoar, gestos estes que nos trazem esperança.

Na briga pelo desamor, como a referida nos versos lá de cima, uma prostituta recebeu carinho e mordomia, mas preferiu voltar às ruas, levando a pecha de indigna. O amante desapontado destila todo o seu veneno. Numa visão mais generalista, que a indignação nos sirva de lume para mudar o que nos causa repulsa e aversão a tudo aquilo que nos ultraja e nos afronta. E que os gestos vis e torpes saiam de moda, para que atitudes edificantes voltem a ocupar as manchetes. As manifestações populares de desagravo contra a corrupção, um dos nossos feios pecados, é um tímido começo.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



2 comentários:

  1. Texto forte e contundente, sem espaço para meias medidas ou eufemismos: diz o que tem que dizer e nos põe a refletir. Mais um ótimo, Mara.

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  2. Ai, Marcelo, a cena do mergulho do cadáver antes arrumado para o enterro e depois jogado no formol foi inesquecível, no mau sentido. Eu era uma menina de 18 anos e tive de passar por isso. A vida como ela é, é desse jeito mesmo. Obrigada pela passagem e opinião.

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