* Por Humberto de Campos
O comendador Luiz de Faria acabava de fechar os
olhos à velha marquesa de São Justino, adoçando-lhe o momento da morte com a
noticia alvissareira e mentirosa da completa regeneração do seu neto, o
estudante Guilherme de Araújo, quando o encontrei à porta da casa funerária, à
espera do seu automóvel. Abalado, ainda, pela emoção daquele instante, em que
tivera de lançar mão de uma falsidade para perfumar o último sopro de uma vida
de virtudes e sofrimentos, o antigo par do reino português aceitou um lugar no
meu "taxi", e confessou-me, em viagem:
- A mentira, meu amigo, é, às vezes, uma
necessidade. Aquela de que me socorri há meia hora, para suavizar a morte de
uma santa, de uma senhora cuja maior esperança consistia no futuro de um neto
que se desgarrara do lar, era tão necessária como a do prior da Cartuxa para
alegrar a agonia daquele célebre monge do Bussaco.
Eu olhei, interrogativamente, o meu companheiro
de viagem, e ele, percebendo a ignorância, indagou, com admiração:
- Não conhece, então, a lenda da rosa azul?
À minha afirmativa, que lhe pareceu estranha, o
comendador apoiou as mãos robustas no castão de ouro da bengala, e contou:
- No Mosteiro da Cartuxa, no Bussaco, em
Portugal, vivia, em séculos que já se foram, um piedoso e santo monge, cuja
vida se consumia, inteira, entre a oração e as rosas. Jardineiro da alma e das
flores, passava ele as manhãs de joelhos, no silencio da nave, aos pés de um
Cristo crucificado, e as tardes, no pequeno jardim da ordem, curvado diante das
roseiras, que ele próprio plantava e regava.
O comendador interrompeu um momento a narrativa,
recostou-se na almofada, e continuou:
A sua paciência de jardineiro era absorvida,
entretanto, por uma idéia, que era um sonho: encontrar a rosa azul das legendas
do Oriente, de que tivera noticia, uma noite, ao ler os poemas latinos dos
velhos monges medievais. Para isso, casava ele as sementes, os brotos, fundia
os enxertos, combinando as terras, com que as cobria, e as águas, com que as
regava, esperando, ansioso, o aparecimento, no topo da haste, do sonhado botão
azul! Ao fim de setenta anos de experiências e sonhos, em que se lhe misturavam
na imaginação as chagas vermelhas de Cristo e as manchas celestes da sua rosa
encantada, surgiu, afinal, no coroamento de um galho de roseira, um botão azul,
como o céu. Centenário e curvado, o velhinho não resistiu à emoção; adoeceu, e,
conduzido à cela, ajoelhou-se diante do Crucificado, pedindo-lhe, entre soluços
pungentes, que, como prêmio à santidade da sua vida, não lhe cerrasse os olhos
sem que eles vissem, contentes, o desabrochar da sua rosa azul.
Uma nova pausa, e o meu companheiro tornou:
- Em volta do santo velhinho, no catre do
mosteiro, todos choravam, compungidos. E foi, então, que, divulgada de boca em
boca, foi a noticia ter a um convento das proximidades, onde jazia, orando e
sonhando, uma linda infanta de Portugal. Moça e formosa, e, além de formosa e
moça, - fidalga e portuguesa, compreendeu a pequenina freira, no jardim do seu
sonho, o valor daquela ilusão, e correu à sua cela, consumindo toda uma noite a
fazer, com os seus dedos de neve, uma viçosa flor de seda azul, que perfumou,
ela própria, com essência de gerânio. E no dia seguinte, pela manhã, morria no
seu catre, sorrindo entre lágrimas de alegria, por ter nas mãos tremulas, por
um milagre do céu, a sua rosa azul!
O "taxi" parava no meio-fio da calçada,
o comendador acrescentou, estendendo-me a mão agradecida:
- Feliz, meu amigo, aquele que morre, como esse
monge e a marquesa, apertando nas mãos a rosa, mesmo mentirosa, de uma roseira
de que cuidou toda a vida.
* Escritor maranhense,
membro da Academia Brasileira de Letras
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