O preciosismo do mestre K.
* Por
Urariano Mota
O homem que me contou
este caso não é nenhum corrupto. Ainda que não haja contradição entre ser um
cientista e um senhor corrupto, ele é um mestre, um cientista. Para melhor
situá-lo, direi que é biólogo de uma escola superior do sul do Brasil. No
entanto, a sua pessoa poderá ser vista em qualquer cidade. Com a palavra, o
mestre K:
“A coisa está pior do
que se pode imaginar.
O senhor se julga um
escritor, um sujeito dotado de fantasia? Então acompanhe o que lhe vou contar,
porque a sua imaginação vai aprender muito.
Eu fui nomeado para ser
relator de uma dissertação de mestrado. Tudo bem, isso faz parte do meu
trabalho. Por experiência eu sei que não devo esperar teses que revolucionem o
mundo da ciência. Revolução? Menos, para que exagerar? A realidade já é um
exagero. Para dizer a verdade, eu não devo esperar a mínima contribuição para
qualquer coisa. Como eu sou um homem honesto, eu lhe digo que se esse fosse o
critério, eu não estaria no lugar onde estou. Mas não ter esperança é diferente
da mais completa desesperança. Acompanhe.
Quando eu havia
corrigido cerca de 2/3 da tese, eu tinha contado cerca de 150 erros de
português. Preste bem atenção. Eu não sou exatamente um cultor do português, a
minha especialidade é outra. Mas havia erros crassos, gritantes até para mim.
Agora olhe como as coisas andam na maior concordância orgânica. O que o
trabalho não sabia de português, melhor ainda não sabia da ciência biológica.
Que maravilhosa coerência, não é? Havia antagonismos, buracos, saltos, o diabo.
Então chamei o aluno, contei-lhe o estado deplorável da sua tese.
O aluno, muito vivo, me
respondeu então, na minha cara, pois a que cara ele haveria de falar, não é?...
na minha cara ele me disse que não tinha tempo de fazer as correções antes da
defesa, que já estava marcada para o dia 13 de abril, e que viria um outro
doutor de Brasília para a banca examinadora, etc. Então eu disse a ele:
‘Escute, você me fez perder um tempo grande na correção. Mas se a data da defesa
já está marcada e seu orientador acha que o trabalho está apresentável, não vou
criar problema. Mas tem uma coisa: retire o meu nome de relator, certo?
’
Não sei por que cargas
d'água o futuro ‘cientista’ achou que a comissão examinadora poderia criar problemas
se ele não recebesse ‘o apto a ser julgado’ do relator, no caso, eu. Por conta
dessa dúvida, ele apareceu em minha casa acompanhado dos seguintes fundamentos
teóricos e experiências de laboratório: o seu poderoso pai com mostras de
riqueza nas roupas, nos sapatos, mencionando de passagem o carro importado,
junto às mais importantes citações científicas, todas de nomes de políticos e
de pessoas influentes da sociedade. Claro, como a visita era de amizade, como
era uma política de boa vizinhança, trouxeram um litro de uísque antigo, cujo
preço é o meu salário … Eu não só dispensei o ‘presente’ como voltei a explicar
tudo de novo: ‘O problema é seu e de seu orientador. O que vocês acordarem, pra
mim está ótimo. Agora, não coloque o meu nome nessa história. Só isso’.
Bem, o ‘cientista’
defendeu o indefensável, não fez as modificações sugeridas por mim e pela banca
examinadora, mas foi aprovado. Quando imprimiu os seis volumes da dissertação,
deixou o meu nome como relator. Eu só não chamei o cara de santo. Então, fiz
uma reclamação por escrito ao coordenador da pós-graduação e lhe disse que já
era a segunda vez que me faziam de palhaço. E numa atitude radical, consegui
apagar o meu nome em quatro dos seis volumes impressos, com corretivo. O pai do aluno, quando soube de minha atitude, o que fez? Imagine, o pai do farsante me
ameaçou com um processo. Eu era o delinquente! Ainda bem que para a minha
sorte, para que o pai indignado não levasse adiante o processo, não havia prova
de que eu cometera o crime de apagar o meu nome. E para maior atenuante, ainda
havia dois exemplares com o meu nome de relator.
Agora, vem a melhor
parte: contando isso aos colegas em uma reunião do Departamento de Biologia, em
vez de receber apoio integral pela minha atitude, eu fui acusado de estar com
excesso de ‘preciosismo’ nas minhas correções. Os professores mais corruptos
disseram que eu fui idiota, metido a Robespierre em não ter aceitado o litro de
uísque do cara. Em nome até da boa convivência, eu nada respondi a quem me chamou
de Robespierre. Minha cabeça podia ir para a guilhotina”.
E aqui termina a fala
do mestre K. Acreditem os leitores, o narrado não é ficção. Acontece em muitos
lugares do Brasil.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário