Cem dias em dez
* Por Fernando Yanmar
Narciso
Já dizia Maquiavel: Mantenha os
amigos por perto e os inimigos mais perto ainda. Quando duas pessoas parecem
ter simplesmente nascido em pólos opostos, parece não haver nada que as faça
conviver em harmonia. Javert, o policial implicante de Os Miseráveis, dedicou
vinte anos de sua vida a odiar, perseguir e tramar a prisão de um homem que, no
fim das contas, não estava nem aí para ele. Apesar de não ser homem de muitas
amizades e averso a brigas, tenho minha pequena coletânea de “Javerts”...
Com a separação de meus pais, o mundo
pareceu desaparecer embaixo de meus pés e dos de meu pai. Naquele ano horrível,
qualquer pessoa que ambos trouxessem para minha vida seria visto como um
intruso, um ser extraterrestre pertencente aos laboratórios de Roswell. Foi
nessas condições que fui apresentado à namorada de meu pai. Creio que não nos
demos bem desde o primeiro encontro, culpa de minha língua descontrolada e do
gênio desumanamente difícil dela. Ela é do tipo de gente que basta encontrar o
papel higiênico posto no gancho pela direção errada que já sai tocando o
terror.
Após alguns bate-bocas e tentativas
frustradas de socialização, pai chegou à conclusão que não ia dar certo o
convívio entre eu e ela. Há sete anos, ele virou o Muro de Berlin separando as
duas Alemanhas. Quando há um programa na família da mulher, como ir ao clube, à
roça ou uma excursão para a praia, ele nunca me convida. Costuma dizer que eu
não ia gostar dos programas da família dela, coisa e tal. Pensava que eram como
as desculpas da raposa que não consegue pegar as uvas, mas ano passado descobri
que talvez seja uma decisão das mais sensatas que ele nos mantenha afastados.
Era o mês de dezembro, e como de
costume, meu pai planejava nossa viagem habitual ao nordeste, para passar as
festas com a família. A princípio iríamos de avião, como das outras vezes, mas
eis que a mulher cisma de vir junto, mesmo morrendo de medo de avião. Conversa
vai, conversa vem e muita encheção de saco mais tarde, ficou decidido que
viajaríamos os três, só que de carro! Para ele era uma grande oportunidade,
afinal tinha curiosidade para saber o estado de nossas maravilhosas cidades, e
usaria o convívio forçado para tentar a reconciliação entre eu e ela, para quem
vivia prometendo uma viagem à Natal desde que se conheceram. Inocente, chegou a
comprar um carro 0 Km só para levar a “esposa” numa romântica lua-de-mel.
Apesar das longuíssimas horas de
estrada, contando com buraqueira, temporais, estradas bloqueadas para reparo,
engarrafamentos, pedágios mil, postos de beira de estrada infectos e o
escambau, a “esposa” aguentou a viagem relativamente numa boa, sem implicâncias
ou discussões sérias. Mas ao chegarmos ao nosso destino o caldo engrossou de
vez. Como se tivesse reservado as energias até ali, bastou eu e pai tomarmos a
decisão de eu ficar junto com eles no hotel, ao invés de me hospedar na a casa
de uns tios como havíamos combinado, pra tal lua-de-mel dos sonhos dela descer
pelo ralo.
Bem que tentamos formar algum vínculo
no início, mas nos seis dias que ficamos em Natal, ela parecia possuída por um
cruzamento de Dona Florinda com o Diabo da Tasmânia! Nothing, absolutamente
nada prestou pra ela. Punha defeito em tudo o que via. Sugeríamos programas,
ela vestia a máscara de carranca e virava uma fortaleza impenetrável. A gente
ia comer, ela fazia cara de quem virou um frasco de Plasil. Na praia,
praguejava até contra o vento. Nem eu nem pai conseguíamos entender o motivo de
tanta marrentice, mas num dia ou dois ficou bem claro: Era minha presença. O
fato de eu não ter deixado meu pai só pra ela e não ter ficado com meus tios a
irritou profundamente, ao ponto que numa ocasião ela disse que só iria andar de
bugre nas dunas se eu ficasse no hotel. Pode isso, Arnaldo?
Bem, para ser muito justo, a viagem
não foi infernal por culpa exclusivamente dela. Houve alguns atritos entre nós,
uns sérios e outros nem tanto, mas a reação selvagem que a prima-donna demonstrou
no litoral permanece descabida e carecendo de um pedido de desculpas pro meu
pai e para mim, afinal ela sepultou nossas férias. Apesar de tantas rusgas,
rabugice e troca de farpas entre nós, nessa Guerra das Rosas que atravessou
praticamente uma década, minha natureza razoavelmente pacífica ainda me leva a
crer na possibilidade de uma reconciliação, num futuro talvez não tão distante.
Se até Nina e Carminha ficaram de boa
no fim da novela, se os Gungans chegaram a um acordo com os Naboos, se Mandela
conseguiu unir brancos e negros e se até a Dona Florinda já perdoou Seu Madruga
algumas vezes, por que não conseguiríamos resolver essa situação? Afinal,
Madruguinha ensinou a várias gerações que as pessoas boas devem amar os seus
inimigos. Ou, no mínimo, sentar-se ao lado deles e resistir à tentação de voar
no pescoço um do outro.
*Designer e
escritor. Sites:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
http://cyberyanmar.deviantart.com
HTTP://www.facebook.com/terradeexcluidos
Quando a madrasta não é boa, resulta numa viagem cheia de agonia. Juntar inimigos, esta é a sua proposta final, porém sugiro que seja só muito de vez em quando e de preferência, por alguns minutos, apenas.
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