Meu Corpo, esse desconhecido
* Por Risomar Fasanaro
(Para Rosângela Bottairi )
Primeira sessão de RPG: Rosângela
Bottairi, a fisioterapeuta, me pede para ficar diante do espelho, e me aponta,
com toda a delicadeza de que um ser humano é capaz, os ombros caídos, a cabeça
fora do lugar, enfim...me mostra uma mulher que nunca vi, um ser desconhecido
cujo corpo se perdeu ao longo dos anos. Depois me encaminha até a maca que, com
carinho de mãe, ela aquece antes de cada sessão para que os clientes não sintam
frio nesta São Paulo in(v,f)ernal.
Um som inigualável inunda o
ambiente, é Keith Jarrett, meu instrumentista predileto. Aquele som da primeira
parte de “The Koln concert” me inunda até a alma, e sou tomada por uma emoção
muito forte. Me dou conta de que eu, que li e leio tanto, nunca li meu corpo.
Nenhuma página, nada. Ele é um livro inédito para mim. Tenho de assumir que
ali, naquele consultório, sou analfabeta, completamente analfabeta. Não conheço
nenhuma vogal, nenhuma consoante. E imagino a angústia de alguém que nunca
aprendeu a ler, não conhece as letras, as palavras, as frases, não consegue ler
um livro. É isso que vivo naquele instante. Perdida em uma cidade desconhecida
de um país cuja língua desconheço, sem o endereço do hotel onde estou hospedada.
Enquanto me acomodo, penso no que
ela me mostrou, e me pergunto: que situações vivi que me levaram a curvar esta
coluna dorsal? O que aconteceu, que palavras ouvi, que me feriram tanto que
mexeu com minha coluna cervical, e minha cabeça saiu do lugar? Por que hoje
meus quadris já não são os mesmos e ainda que me curve, não consigo encostar as
mãos nas pontas dos pés? Não sei. E se nem ao menos sabia ler, muito menos
interpretar, coisa que em literatura faço razoavelmente bem.
Ah...como queria saber ler cada
letra, cada linha deste corpo, cada gesto dessas mãos, cada balanço desses
quadris.
Como queria saber quando
nasceram, e por que tenho essas duas rugas entre as sobrancelhas, e que
revendo fotos de minha infância, percebo,
já existiam desde meus sete anos...
Com muita paciência, ela me
orienta: respire, expire, empurre esse lado do quadril... Eleve o ombro até
minha mão... relaxe...Empurre só esta parte do quadril para a direita. Tento,
tento, não consigo. Com suavidade ela me diz: “entre no seu corpo, converse com
ele... você vai conseguir. Deixe a cabeça, é aí dentro de você, conversando com
seu corpo que vai conseguir. Vamos de novo”.
Tento novamente, mas o que me vem
são lágrimas. Elas escorrem lentamente, sem que eu saiba por quê. Ali minha
cabeça não manda, o que me move é a emoção. É o diálogo de dois seres que se
encontram e conversam pela primeira vez .
Pergunto a ele: por que você não me obedece? Por que não se
move para o lado que a Rosângela manda?
Mas sua única resposta são as lágrimas. Volto a ouvir a voz dela: “expire, encoste o ombro direito em minha
mão, relaxe... abaixe o ombro, empurre esse lado para a esquerda, afaste
os braços do corpo...”
E enquanto ela vai orientando
meus movimentos, vou tentando descobrir de que curva saiu aquele poema que
escrevi quando você partiu sem olhar para trás. Encontro no mais dentro de mim
aquela carta em que lhe dizia tudo que me magoava, e que depois de escrita me
deixou uma dor tão grande, tão profunda, por lhe fazer sofrer, dor maior que a
mágoa que me levara a lhe escrever.
Ela volta a me ajudar: “estique
aqui, empurre ali...” E de repente sinto que aquele adeus saiu desses braços
que já não me obedecem, que talvez esses ombros que não se alinham tenham
ficado assim quando me curvei para beijá-lhe as costas enquanto dormia, e que
os quadris não se encaixam, desde que me abaixei quando o vinho entornou sobre
a toalha de linho branco, e sem querer quebrei a taça de cristal e me abaixei
para apanhar.
Você riu quando as rimas se
espalharam, porque eu, talvez um pouco bêbada, caí sentada no chão. E nós dois
rimos, que era o que mais fazíamos quando estávamos juntos.
As metáforas dos meus gestos
ficaram ali, entortando aquelas vértebras, e eram oxímoros quem sabe a me causar essas distorções, que
hoje Rosângela tenta alinhar.
Ela volta a pedir: “entre no seu
corpo, converse com ele...” E visualizo, dentro de mim, uma menininha que me
ajuda; empurra aqui, ajeita ali, e tudo vai se acomodando, tudo começa a voltar
ao seu lugar.
E
novamente vejo-o e me vejo: minhas aliterações lhe ferindo, me ferindo,
e a dor na alma. Tão grande que em mim se refletia, e molhada em seu pranto era
neste corpo que se alojavam os paradoxos que se colaram em mim, sem que eu me
desse conta.
Vou tentando aprender que
odisséia me conduziu até aqui, em que sexagésima os sermões dos peixes curvaram o corpo desta mulher
cansada e envelhecida, e que no entanto luta para se passar a limpo, colocar metáforas que o
embelezem, rimas originais que o distingam, de forma que o espelho mostre ser
possível ver nos sulcos que há no rosto a mesma suavidade que há nos sulcos da
terra por onde correm os regatos, tão belos na natureza.
Que a postura se eleve com a elegância de uma
araucária e que os olhos voltem a ter a suavidade que tiveram um dia, para que
ao me olhar no espelho me reconheça, e me saiba ler em cada linha, em cada ode,
em cada soneto, em cada haicai.
E Rosângela, esse anjo que luta
kung fu me diz: viu como você conseguiu? Parabéns! É este o segredo: sentir. Aqui, para conseguir isso, não é a razão que
manda, é o sentimento, é o corpo. Você precisa sentir, entrar, conversar com
ele e tudo fica fácil. Estão lindas
suas costas! Você fez direitinho. Que linda! Diz sorrindo. Tão feliz quanto
eu.
Rio, e brinco com ela: “você
pensa que sou a ‘menina de ouro?’ Não sou não. Sou de lata”. E ela, que tem
tatuado no braço: “meu sangue, minha vida”, escrita em japonês a frase do treinador da Menina de
Ouro do filme, me diz: “é sim, você é uma
menina de ouro”.
E quem sabe um dia, quem sabe, depois
que ela alfabetizar meu corpo, eu possa me ler sem tropeços. Me ler como leio
os livros: analisando, interpretando. Melhor; me ler com a mesma emoção com que
leio os poemas de Pessoa, de Leminski,
sim de Leminski, que tão bem conhecia o corpo e que, quem sabe, por isso tenha criado tão linda obra. Quem sabe um dia eu
possa corrigir todos os erros que cometi e que aqui se abrigaram de forma tão
concreta. E que esses erros dele saindo, possam deixar a alma em paz. Aquela “paz de criança
dormindo” de que tão lindamente falou Dolores Duran.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
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