Centelhas de vida
* Por
Urda Alice Klueger
Era uma vez, lá no Paraíso Terrestre, quando Deus criou Adão e Eva e
todos os animais, criou Ele, também, um casal de cachorrinhos. Viviam todos,
lá, muito felizes, e se não fosse a preocupação de Eva e Adão de provarem dos
frutos da Árvore do Bem e do Mal, a festa lá ainda não teria acabado, e ninguém
passaria nenhum tipo de privação neste mundo.
Bem, o fato é que lá, junto com Adão e Eva, havia um casal de
cachorrinhos, e que enquanto Eva era tentada pela Serpente, os cachorrinhos,
muito naturalmente, tiveram seus primeiros filhotes, que tiveram outros
filhotes, que tiveram outros filhotes, até que um dia, milhares de anos depois,
nasceram os dois cachorrinhos que vivem na rua do lado da minha casa.
Eu comecei a vê-los no começo deste inverno que está tão frio: dois
cachorrinhos amarelos, dos mais legítimos vira-latas, a saírem para a entrada da rua, bem na minha esquina, para
ficarem ao sol que chega antes na esquina do que na casa deles. Pequenas
centelhas de vida explodindo de inteligência e alegria, eles sabem exatamente a
hora em que o sol chega a um pedaço quadrado de asfalto na saída da rua, e lá vêm, lépidos e alegres, a
balançarem seus rabinhos na efusão gratuita de viver, para aproveitarem o calor
fraco do sol e se aquecerem.
Como se divertem os dois bichinhos! Eles ainda são cachorrinhos muito
novos, mal e mal deixaram de ser bebês, e a idade adulta deve vir só lá pelo
verão. Estão naquela fase em que os cachorrinhos gostam de roer os chinelos das
pessoas, e onde a alegria é infinita dentro dos corpinhos peludos e inquietos
de tanta vida. Naquele quadrado de sol da esquina da minha rua, eles se aquecem
com os focinhos erguidos, e brincam, alternadamente, brincam um com o outro
tendo a certeza de que a coisa mais importante deste mundo é brincar. Eles
conhecem todas as crianças da redondeza, e todas as crianças os conhecem –
quando elas passam, cedinho, em direção da escola, eles interrompem suas
brincadeiras para fazerem festa às crianças, e acompanham-nas um bom estirão
pelas calçadas, até lembrarem-se que têm seu quadrado de sol no mundo, e
voltarem à minha esquina.
Conhecem gente grande também: recentemente, quis saber mais sobre eles.
Minha amiga Margarida contou-me que se chamam Toco e Bilú, e Margarida é uma
mulher séria, tesoureira de um banco, o tipo de pessoa que a gente não pensa
que sabe o nome de dois cachorrinhos de nada, duas centelhazinhas de vida que
surgiram no começo do inverno num quadrado de sol. Depois que Margarida
contou-me até o nome deles é que vi o quanto estão populares em toda a
vizinhança.
Sabedora, agora, dos seus nomes, ontem de manhã fui lá falar com eles. O
dia estava nublado, e o pedaço de sol não tinha aparecido na esquina. Os
cachorrinhos, porém, sabiam perfeitamente onde ele iria surgir, se surgisse,
estavam lá sentados,com cara de aborrecidos pela falta daquele amigo Sol que os
tem aquecido desde que se lembram, na sua curta vida. Eles ainda não me
conheciam – sempre os observo de longe, de dentro da garagem – e se mostraram
indiferentes até que chamei:
– Toco!
Na hora descobri quem era Toco, pois ele veio pular em mim arrebentando
de alegria, e foi só chamar “Bilú”, para que Bilú também entrasse num paroxismo
de prazer e de pulos, ambos inteiramente cônscios da sua identidade neste
mundo. Nasceram faz pouco tempo: da vida só conhecem o quadrado de sol e as
crianças que passam, mas sabem muito bem como cada um se chama, e como ficam
gratuitamente felizes quando um adulto se digna dar-lhe o pequeno nome que é
quase tudo o que possuem!
Eles pularam e me lamberam até que eu tive de ir-me. Pelo retrovisor do
carro, fiquei vendo como, depois da alegria de terem sido reconhecidos por um
adulto, esqueceram-se de que o quadrado de sol não tinha vindo, naquele dia, e
passaram a brincar com a mesma alegria de quando se sentiam aquecidos!
Se Adão e Eva não tivessem acabado comendo do fruto da Árvore do Bem e
do Mal, cachorrinhos como Toco e Bilú nunca sentiriam frio, e nunca precisariam
ficar brincando num quadrado de sol na esquina de uma rua, e não haveria na
minha vida a luz das suas pequenas centelhas de vida. Até que Adão e Eva não
erraram de todo!
Blumenau, 04 de agosto de 1996.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
Que gostosura de história.
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