quarta-feira, 12 de outubro de 2011



Os pregões que me lembro do Recife “matuto” - Parte VIII

* Por Paulo Lisker (de Israel)

O dia todo mais e mais vendedores ambulantes passavam na nossa rua Gervásio Pires, no bairro da Boa Vista, no Recife.
Já de longe se ouvia os pregões anunciando a sua chegada com as mercadorias que traziam.
Devemos em tempo salientar que havia aqueles que não eram de profissão estável como ambulante.
Eles só apareciam em determinadas épocas do ano e com produtos em falta no mercado. Produtos estes necessários a cozinha e aos "costumes dietéticos" dos judeus na época.
Hoje, descreveremos um deles operando um serviço para a comunidade judaica no bairro da Boa Vista, no Recife Matuto.

SERVIÇO ESPECIAL PARA AS FAMÍLIAS JUDIAS

No passado, nem sempre estava à disposição do consumidor um ou outro produto comestível em especial para a "dieta judaica".
Era comum ouvir com frequência a clássica frase:
"Está em falta minha senhora, quem sabe amanhã chega. Venha amanhã, guardo pra senhora. Amanhã sem falta"
Como isto mormente acontecia, se criou um serviço voluntário (mediante pagamento, claro) que procurava encontrar o produto em falta fosse onde fosse, até nos cafundós de Judas (Em nordestino, lugares de difícil acesso), pagando alguma propina ou por amizades nos lugares certos.
Um dos serviços desta espécie, entre outros, fazia uma senhora idosa, quando o produto rareava no mercado, a manteiga.
Apresentaremos o primeiro caso, muito conhecido na comunidade judaica do Recife.

Primeira "aquarela" - Parte um

DONA SHPRINTZE- (Corruptela, da palavra "esperanza", em espanhol)

Senhora já na meia idade, judia de origem polaca, viúva, mãe de 3 filhos, cabelos brancos, rosto enrugado, não sabia o que era baton ou rouge, sempre ao natural e bem disposta com um sorriso amargo nos lábios.
Vivia num quartinho rústico num pátio junto a outras casas simples de judeus pobres no Beco da Mangueira.
O aluguel caro pago pela "casa terra", muito guabiru gordo que roia tudo dentro do casebre e goteiras irreparáveis quando chovia. No Recife daquela época chovia pra "chuchu (em nordestino, "muito, muito mesmo"), não a tal chuvinha miúda como diz a canção, já não me lembro de quem, (que me desculpem): "chuva vai, chuva vem, chuva miúda não mata ninguém...".
No Recife daquela época não tinha disso não, chuva era chuva mesmo de "purmão roncar" (pneumonia) e daí pra frente!
Arrodiada (cercada em nordestino) de tantos problemas se mudou dona Shprintze para uma pensão barata na Rua Barão de São Borja lá pelas imediações da Rua da Soledade (nomes lindos tinham as ruas do Recife). Um dos filhos ela colocou num internato grátis e os outros dois, (um filho e uma filha) viviam com ela na pensão.
Vida difícil da senhora Shprintze, judia pobre.
Agora vamos ao âmago do cotidiano.
Faltava manteiga com ou sem sal e no mercado as prateleiras estavam vazias?
Ninguém sabia dizer quando voltaria a manteiga para o bem geral da nação!
Os judeus eram os primeiros que ficavam agoniados e amedrontados com a falta deste produto. E por quê?
Lembrava a falta nas épocas de guerra ou revoluções no continente natal deles, a Europa.
Estes acontecimentos fizeram os judeus passar fome, perseguições e até extermínio, não somente eles, porem eles eram os primeiros atingidos e os mais castigados.
A "lição" foi rapidamente assimilada e daí o medo quando começava a rarear comida no mercado.
"Isto é sinal de coisa ruim que vem por aí, silabavam como estivessem revelando um segredo que só eles conheciam".
Sempre o primeiro produto que desaparecia do mercado nestas horas, era exatamente a manteiga e depois os produtos lácteos (coalhadas, queijo branco).
Porém a manteiga era uma espécie de "barômetro", naquele tempo, especialmente para o povo judeu. Se pode perfeitamente entender!
Para resolver o impasse caracterizado pela a falta do produto nas vendas e quitandas da cidade do Recife (tem aqueles que acham que o Recife era uma "vila grande e atrasada no tempo"), concomitantemente acalmar os nervos da comunidade judaica, entrava em ação a senhora dona Shprintze.
Ela tinha conhecidos na Usina de Lacticínios e com a ajuda destes, resolvia o problema dando uma solução viável e fim do "caos".
Ela conseguia o produto faltante que estava escondido nas câmaras refrigeradas para atender somente aos graúdos da cidade. Eles faziam exatamente como ela. Soltavam uma propina ou uma "gratificação" aos pobres armazenistas da usina de laticínios e o problema deixava de ser insolúvel. Nunca faltou o produto para os graúdos da cidade, mesmo que tivessem que importar da Holanda.
Como dona Shprintze tinha boa amizade com o pessoal da Usina, conseguia naquela época de falta comprar a manteiga a um preço algo maior (incluído a propina) que o distribuidor grossista e vendia de porta em porta nas casas das famílias judias da comunidade. Como dizíamos na época "A ovelha sã e salva e o lobo de barriga cheia".
Ela cobrava por cada unidade (caixinhas quadradas de papelão, 250 gramas) o dobro ou até o triplo do preço de compra e assim sobrevivia. Verdade seja dita, ela sabia negociar e fazer contas.
Os judeus ao constatarem que a manteiga estava na porta se sentiam psicologicamente serenos e fora do perigo eminente que já, já estala uma revolução bolchevique ou os nazistas estão por chegar ou pior ainda, uma guerra mundial. Vejam só aonde levava a falta de manteiga este "Povo preferido por Deus", um bando de molengas (medrosos ou psicóticos em nordestino).
Dona Shprintze dizia em iídiche a minha mãe:
"Got zol mich uphiten, noch a revolutzie oder a krieg feilt mich ietst".
(Que Deus me livre e guarde de uma revolução ou uma guerra agora).
As duas acreditavam seriamente nestes "sinais do além" e ela vivia murmurando em iídiche: "Got zol mich uphiten, Got zol mich uphitn" (Deus me livre, Deus me cuide), feito quem estava rezando.
A minha mãe foi um período bastante longo "presidentke" (Secretaria Geral do Relief, ONG de ajuda aos necessitados da comunidade judaica).
Ela recomendou a diretiva desta organização reconhecer a dona Shprintze como "necessitada", assim sendo, ela tinha o direito de receber uma mesada para manutenção dos filhos.
O tempo foi passando e com a idade e dificuldade de caminhar, ela recebia desta ONG "Relief" uma ajuda financeira para não sucumbir de todo.
Meu Pai que não era "muito católico" (não acreditava muito sem discutir, este tipo de atuação. Gíria nordestina) e era meio sarcástico em relação a estas ajudas feitas pelas ONGs aos "necessitados".
Uma vez ele perguntou a minha mãe que era "presidentke" (secretaria geral).
-Diga-me Anna, que decisões importantes tomaram vocês na reunião de hoje em prol dos pobres.
-Decidimos voltar e nos reunir novamente na próxima segunda feira, respondeu a presidentka, minha mãe!
Pai riu e o sarcasmo passou para cinismo.
Ele só acreditava no trabalho pesado e não viver recebendo esmolas. Bem, ele era da velha guarda daqueles que tinham vergonha na cara e mãos calejadas.
Antes das festas judaicas dona Shprintze mandava os seus filhos entregar manteiga segundo uma lista que preparava em tempo.
Mulher "viradora" (esperta, na gíria da rua). Ela visitava as famílias judaicas para desejar um feliz ano novo (Rosheshune) ou os votos de uma boa Páscoa (A guitn un hakushern Peissach) e nesta oportunidade aproveitava para averiguar se necessitavam do produto e a quantidade.
Sabia ela que nestas festas se usava muita manteiga para tortas, pasteis e comidas da Páscoa.
Dizem também que ela era uma "boleira" de mão cheia e ajudava nas festas de casamento, noivado e outras comemorações das famílias da comunidade judaica.
Sua arte culinária e a riqueza dos sabores de suas tortas e pasteis, causavam a admiração de todos. Dizem que até de Alagoas vinham encomendar da sua confeitaria.
Nas festas, ao comer algo de dona Shprintze, "estalavam a língua" (saboreavam com muito prazer, em nordestino) e diziam:
"Dou a minha cara a bufete se esta torta não foi receita da dona Shprintze". (Em iidiche: kenst mir guibem a patch in punim ven ich bin nisht guerecht ven di tort is nicht a retzept fin froi Shprintze)!
Fato que ninguém conta era que ela sempre foi uma mulher enérgica e de muita iniciativa apesar de ser considerada "necessitada."
A prova disso, quando realmente escasseava de todo a manteiga na Usina e nem para os graúdos da cidade restava, ela fazia uso do conhecimento que tinha com alguns donos de vacarias na Ilha do Leite e no Curado e daí vinha a solução alternativa.
Viajava de bonde fizesse sol ou chuva e comprava leite dos donos das vacarias e lá mesmo produzia manteiga com uma batedeira manual que possuía e que carregou toda esta distancia consigo, da pequena aldeia na Europa, sua terra natal, até o Recife.
Todo este esforço não só para ganhar a vida, mas também trazer calma a colônia judaica.
Manteiga, manteiga, tem de novo manteiga, já se sente até o cheirinho e isso fazia dissipar o medo psicológico deste povo sofrido.
Falta de manteiga é sinal que algo de ruim está por acontecer. "Zol Got mich up hitn" (Deus me livre em iídiche*).
Vige!

* Iídiche- Um dialeto derivado do idioma alemão (uma corruptela), que os judeus da Europa leste usaram durante centena de anos para se comunicar entre si, pois viviam em dezenas de países sem dominar o idioma local.
* Existe também o "Ladino", outro idioma usado pelos judeus oriundos da Espanha e Portugal que depois de expulsos destes países no final do século XV se instalaram no norte da África e sul da Europa. Estes dois dialetos existem até hoje em dia, porém estão em franco declínio pelo ressurgimento da língua hebraica depois da instalação do Estado de Israel.

• Escritor

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