

Sibipiruna sifu
• Por Ronaldo Bressane
A cidade não pára de se transformar numa outra coisa. De vez em quando se revolta. Acabo de ver a sibipiruna em frente ao Copan desabar. Uma sibipiruna centenária de uns 15 metros. A chuva forte do fim de noite golpeou a árvore até que ela desabasse sobre dois automóveis, que viraram sopa de alumínio. Não, não tinha ninguém dentro, diz o bombeiro. Mas árvores assim não se vê muito em São Paulo, completa ele.
A sibipiruna fazia parte do cartão postal da cidade que quase não tem cartões postais. As motosserras começam a cortar a árvore em vários pedaços. Umas vinte pessoas assistem ao trabalho dos bombeiros. Duas motosserras rugem furiosas, três machados se afiam na carne branca que escorre a seiva para as bocas de lobo entupidas e as putas do Love Story comentam os músculos dos bombeiros sob os uniformes.
Taxistas e motoboys abençoam a própria sorte - esses dias um motoqueiro caiu sob uma árvore matadora, na avenida Sumaré. A sibipiruna levou dois carros com ela. Agora são quinze metros de árvore reduzidos em fatias. Os mendigos em frente ao Bradesco reclamam porque o som das motosserras e dos machados lhes tira o sono e a doideira da cana, da cola e do esmalte. Os bêbados de um boteco ali perto apontam para a árvore animados com o novo assunto. Um velho recolhe alguns pedaços da casca da árvore, põe no casaco e sai andando. Algumas pessoas o imitam.
A árvore fatiada atravessa a avenida Ipiranga. Não era áspera nem intratável, mas certamente agora atrapalha o trânsito. Os pedaços da sibipiruna vão lotando um velho caminhão. A chuva passou e o bafo do verão volta. Os freqüentadores do Love Story que vêm chegando não têm onde estacionar seus veículos. As pessoas saem às janelas do Copan para entender que som é este que reboa pelos edifícios ao redor. Faz duas horas que a árvore caiu e as motosserras continuam seu trabalho.
Uma puta pega umas folhas da árvore e põe no cabelo. Travestis em volta riem dela. O som das motosserras parecem motores de Fórmula-1 saindo quente duma reta. Os guinchos começam a arrastar os carros mortos pela árvore morta. Num boteco ali perto, os bêbados dão as costas à sibipiruna e grudam os olhos na TV. Daqui a dez minutos, Romário entra em campo em Los Angeles para seu último jogo pela Seleção. Quando Romário deixar o futebol, a sibipiruna já terá desaparecido completamente da avenida Ipiranga.
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
• Por Ronaldo Bressane
A cidade não pára de se transformar numa outra coisa. De vez em quando se revolta. Acabo de ver a sibipiruna em frente ao Copan desabar. Uma sibipiruna centenária de uns 15 metros. A chuva forte do fim de noite golpeou a árvore até que ela desabasse sobre dois automóveis, que viraram sopa de alumínio. Não, não tinha ninguém dentro, diz o bombeiro. Mas árvores assim não se vê muito em São Paulo, completa ele.
A sibipiruna fazia parte do cartão postal da cidade que quase não tem cartões postais. As motosserras começam a cortar a árvore em vários pedaços. Umas vinte pessoas assistem ao trabalho dos bombeiros. Duas motosserras rugem furiosas, três machados se afiam na carne branca que escorre a seiva para as bocas de lobo entupidas e as putas do Love Story comentam os músculos dos bombeiros sob os uniformes.
Taxistas e motoboys abençoam a própria sorte - esses dias um motoqueiro caiu sob uma árvore matadora, na avenida Sumaré. A sibipiruna levou dois carros com ela. Agora são quinze metros de árvore reduzidos em fatias. Os mendigos em frente ao Bradesco reclamam porque o som das motosserras e dos machados lhes tira o sono e a doideira da cana, da cola e do esmalte. Os bêbados de um boteco ali perto apontam para a árvore animados com o novo assunto. Um velho recolhe alguns pedaços da casca da árvore, põe no casaco e sai andando. Algumas pessoas o imitam.
A árvore fatiada atravessa a avenida Ipiranga. Não era áspera nem intratável, mas certamente agora atrapalha o trânsito. Os pedaços da sibipiruna vão lotando um velho caminhão. A chuva passou e o bafo do verão volta. Os freqüentadores do Love Story que vêm chegando não têm onde estacionar seus veículos. As pessoas saem às janelas do Copan para entender que som é este que reboa pelos edifícios ao redor. Faz duas horas que a árvore caiu e as motosserras continuam seu trabalho.
Uma puta pega umas folhas da árvore e põe no cabelo. Travestis em volta riem dela. O som das motosserras parecem motores de Fórmula-1 saindo quente duma reta. Os guinchos começam a arrastar os carros mortos pela árvore morta. Num boteco ali perto, os bêbados dão as costas à sibipiruna e grudam os olhos na TV. Daqui a dez minutos, Romário entra em campo em Los Angeles para seu último jogo pela Seleção. Quando Romário deixar o futebol, a sibipiruna já terá desaparecido completamente da avenida Ipiranga.
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
Que linda crônica! Já vivi situação muito parecida, só que a sibipiruna não caiu naturalmente. Uma mulher mandou cortá-la porque "sujava" a frente de sua casa. Revivi esse acontecimento lendo este texto que retrata tão bem SP.
ResponderExcluirAbraços
A natureza torna-se "incômoda" para o progresso. O ritual do sacrifício nem de longe é valorizado como deveria. Ou melhor, as pessoas deveriam impedir acontecimentos desse tipo. No caso, a árvore caiu, mas mesmo quando é sumariamente cortada, nem assim as pessoas se tocam.
ResponderExcluir