segunda-feira, 17 de maio de 2010




Deus não dá sinal de fax

* Por Eduardo Murta

A geografia de cada um dos degraus Agostiniano poderia descrever com familiaridade ímpar. A falha no 18º, à esquerda. A cavidade no 63º, ao centro. O ligeiro desnível no 207º. Se acostumara, menino, às escadas sem fim que haviam inaugurado uma anatomia peculiar às ladeiras do velho Serro. A criançada descendo, ele subindo. Vinha desviando dos queijos e, contam, chegava sem gota de suor ao 241º dos passos. Dava com a capelinha e ficava ali por horas, como esperasse um sinal.

Era com Deus, o próprio, que pusera missão de falar. Achava que o alcançaria mais ampla fosse sua coleção de provações. E fez história assim. Escanteava os doces de Vó Sabrina, passava ao largo dos circos mambembes. Até às sessões das noitinhas de quinta, em que Lucrécio alinhava casos de assombrações pagãs, renunciara. Tudo a que, reconhecidas suas privações, a magia do encontro se materializasse.

Ali pela sombra dos 12 anos cairia numa espécie de instigante encruzilhada. Uma quase enfermidade. Compreendeu alguns dilemas, como a maçã diante de Eva. E já se decidira. Não a morderia. Começou por desviar os olhos dos olhos insinuantes da menina Gioconda. Tangenciava diante do corpo em pêra da professora Madu. As ancas num ondulado provocante a cada equação que ia revelando ao quadro negro. Sonharia com seu perfume noites afora e, insone, na confluência entre desejo e resistência, já sabia de cor os sinais de transição entre madrugadas e manhãs.

O que fazia, fazia pelo esquecimento. Mas dava com o efeito tentador até nos momentos mais sagrados. Sentia a hóstia converter-se em brasa, mesmo nos domingos em que se enxergava fortalecido, pleno. Foi que, provocado, escolheu um caminho ortodoxo a perder de vista. Se lhe exigiam uma costela, daria todo o conjunto da espinha. Naquele 14 de junho, se inscreveria na cota espontânea dos homens celibatários do Serro. Era clube sem sócio, mas alguém haveria de fundá-lo. Fora ele. E, paradoxo, se transformaria em agente especial de cartório. As mangas sobrando ao terninho simples e desconjuntado, confiram que é Agostiniano lendo os termos aos noivos. Chegava a umedecer os lábios, nas urgências do corpo e do coração.

Se resignava, porém, crendo que encurtava os trajetos para a ceia da alegria. E começou a ver significados de glória não nas miudezas comezinhas, mas no que tivesse ordem de grandeza criadora. Interpretou milagre, primeiro, nas mãos de Sá Carolina apagando a lamparina para dar-se a escuridão. E, em seguida, o clic da chave girando. Os rostos em círculo ganhando formas sem o sombreio da chama antiga. Fez-se a luz ali naquele distante e veio foi gente visitar. O mundo agora sob as bênçãos da eletricidade.

Sacralizou, na mesma medida, as vozes chegando assim ao léu pelas ondas do rádio. Com aquela onisciência de que, sem conhecê-lo, saber que ele estava ali. Anos à frente, deificaria mais ainda aquelas caixas imensas em que faltavam tocá-lo. Surpreendia serem pessoas, das de carne e osso, se movendo na tela da tevê. Agostiniano seguro de que em algum lugar da agenda divina seu nome estaria bordado em fios de seda. E dos nobres!!!

Revigorou as certezas algumas décadas depois, pelas mãos da sobrinha Katita. Era cedinho quando ela ligou. Tomou aos dedos o telefone negro, artigo da velha guarda. Ela ao celular, na outra ponta. Chamava da Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Se aproximou da imagem e, brejeira, deu o sinal verde: “Pode falar, que a santinha vai lhe ouvir”. Experimentou sensação de paraíso e, certo de que ela o compreendia, foi sucinto: “Me guia”. Dormiu feito fosse passarinho. E fez planos para o dia seguinte, sem se esquecer das provações.

É ele, cabeça alva, lento, ao 111º degrau das escadarias do Serro. O Criador que fosse paciente e misericordioso. À tardinha, estaria aos últimos passos. Foi já ao 240º que notou. A figura esguia, acima, lhe estendendo as mãos. Bateu com aqueles olhos cuja lembrança com ele viajara por anos a fio. Inconfundíveis. Sorriu para Gioconda, a dos bancos de escola. Traduzia sentimento menino, tardio e maduro a um só tempo. Revelador. Sentiu formigar-lhe leve o coração, jeito abobalhado. Era amor. Era síntese. Era Deus naquelas doses singelas de querer.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas.

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