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Sermão da Primeira Dominga do Advento
* Por Padre Antônio Vieira
PARTE IV
Temos visto quando há de ser certamente o dia do Juízo; e como é hoje, amanhã, e todos os dias; porque o Juízo que se faz no dia da morte, é o mesmo, e não outro que o Juízo final. Agora descendo às circunstâncias de um e outro Juízo: se acaso vos parece que as do Juízo final são mais espantosas e horríveis, digo que, também, neste conceito vos enganais. Muito mais rigorosas, muito mais terríveis, e muito mais para temer, são as circunstâncias do dia do Juízo de agora, de que hão de ser as do que vulgarmente se chama dia do Juízo.
Primeiramente, o que faz grande horror na consideração do Juízo final, é que naquele dia há de acabar este mundo, a que estamos tão pegados. E não cuidamos nem advertimos, que também no dia da morte, se acaba o mundo. Que importa que o mundo se acabe para mim, ou para todos? Que importa que o mundo se acabe para mim ou eu para ele? São Paulo, descrevendo este mundo, para nos desafeiçoar de suas vaidades, diz que é como um teatro, em que as figuras cada uma entra a representar o seu papel, e passa: “Preterit enim figura hujus mundi”. Não diz o Apóstolo, que passa o mundo, se não as figuras; porque as figuras vão-se, e o teatro fica. Alude à sentença do Espírito Santo: “Generatio praeterit, generatio advenit, terra autem in aeternum stat”. Uns nascem, outros morrem; uns vêm a este mundo, outros saem dele, e o mundo como teatro destas representações, sempre está no mesmo lugar, e não se move. Contudo, São João na sua primeira epístola diz que não só nós, os amadores do mundo, somos os que passamos, se não que também o mesmo mundo passa; “Et mundus transit, et concupiscentia ejus”. Pois se o mundo sempre está e permanece firme, e ainda que nós passemos, ele não se move; como diz São João, que também o mundo passa: “Et mundus transit”? Porventura encontra-se a doutrina dos dois Salomões da Igreja, Paulo e João? Não. Ambos por diferentes termos dizem a mesma verdade. Como nós, os que vivemos neste mundo, passamos, e não permanecemos, ainda que o mundo permaneça, também elçe passa: “Et mundus transit”. Não passa o mundo para si, mas passa para nós. Tanto que nós passamos desta vida, também ele passa: tanto que nós acabamos, também ele acaba. Para os que cá ficam, dura e permanecem; para nós acabou juntamente conosco. E senão perguntai aos que morreram, se há para eles mundo, ou alguma coisa do mundo? Se navegavam, acabou para eles o mar; se lavravam, acabou-se a terra; se negociavam, acabaram-se os tratos; se militavam, acabaram-se as guerras; se estudavam, acabaram-se os livros; se governavam o secular ou eclesiástico, acabaram-se as varas, os tribunais, as coroas, as mitras, as púrpuras, as tiaras; tudo se acabou naquele momento. Nem para os reis, nem para os papas, que foram senhores do mundo, há já mundo, porque como eles acabaram e passaram, também o mundo passou e acabou para eles.
Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente), que não era o sol que se movia e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá muita volta, então descobre o sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o sol, e dizemos que se põe. E a maravilha desse novo invento é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos , com a mesma pontualidade e certeza com que até agora seria. O mesmo passa sem erro, e com verdade, nesta passagem nossa, e do mundo. Escolhei duas opiniões qual quiserdes. Ou seja o sol que se move, ou nós que nos movemos; ou o sol se ponha para nós, ou nós para ele, os efeitos são os mesmos. Ou no dia do Juízo o ocaso seja do mundo, ou no dia da morte seja meu; para o mundo, tudo vem a ser o mesmo, porque tudo acaba. Assim como o mundo hoje ainda não é para os que hão de nascer, porque eles ainda não são, assim o mesmo mundo já não é para nós, quando morremos, porque já não somos.
Daqui se segue com evidência que também hoje, amanhã e cada dia, é o fim do mundo. Agora vede com a mesma evidência, quanto mais para temer, e quanto mais para desconsolar é este primeiro fim do mundo no dia da morte, do que há de ser o último dia do Juízo. Sêneca disse que é grande consolação acabar juntamente com o mundo: “Solatium est grande cum universo uma rapi”. Disse mais Sêneca do que entendeu, porque não teve conhecimento do dia do Juízo. Mas em que consiste esta consolação? Consiste em que no dia do Juízo, se o mundo acaba para mim, acaba também para todos. No mal, que é de todos, perde-se a comparação; e onde não há comparação, não há miséria: “Nemo miser, nisi comparatus”. Na morte de agora não é assim. Acaba-se o mundo para mim, mas para os outros não acaba. Aqueles morrem, quando já ninguém pode viver; eu morro e deixo os outros vivendo,. Isto é padecer a morte própria, e mais a vida alheia. No dia do Juízo não há de haver esta dor, porque ninguém se poderá queixar de se lhe acabar o mundo e a vida, quando igualmente se há de acabar para todos, ainda para os que nasceram no mesmo dia. Então, diz São João no Apocalipse, que se há de ouvir a voz de um anjo, o qual diga e apregoe que se acabou o tempo para sempre: “Quia tempus non erit amplius”. O tempo não é outra coisa se não a duração do mundo. Assim como o tempo começou com o mundo, assim há de acabar com ele. E acabar um homem o seu mundo, quando se acaba o mundo; acabar os seus dias, quando se acaba o tempo; como pode ser matéria de sentimento, quando era o mais a que podia aspirar o desejo? E isto é o que sucederá aos que acabarem a vida no dia do Juízo. Mas que se acabe o mundo, e o tempo, e os dias para mim, quando há mundo e tempo, e anos para os outros? Esta é uma grande diferença de dor com que agora acaba o mundo para nós, ou nós para ele. Vamos a outra.
Uma das grandes penas com que Deus ameaçava pelo profeta Amós os ricos e poderosos daquele tempo (como pudera também ameaçar os do nosso) era que edificavam palácios magníficos, e casas de prazer para delícia; mas que não as haviam de lograr: “Domus quadro lapide edificabitis, et non habitabitis in eis: vineas plantabitis amantíssimas, et non bibetis vinun earum”! Esta razão de mágoa corre igualmente em um e outro fim do mundo. Assim os que morrerem então, como os que morrem agora, nenhuma coisa hão de lograr do que com tanto gosto e gasto, e com tanto esquecimento do fim da vida, trabalham, ajuntam, e edificam para ela. Mas esta mesma mágoa há de ser muito menor para os do dia do Juízo. Aquele rico do Evangelho, que fazia conta de viver muitos anos, e morreu na mesma noite, perguntou-lhe a voz do céu: “Et quae parasti, cujus crunt?” E tudo isto que ajuntaste, de quem há de ser? Os que acabarem com o mundo no dia do Juízo, estão livres desta pena; porque não hão de ter a dor de que outros logrem o que eles trabalharam: “Non aedificabunt, et alius habitabit: non plantabunt, et alius metet”, diz o profetas Isaías, e o conta por uma grande felicidade. Mas esta não a podem ter os que morrem enquanto dura o mundo, e tanto menos, quanto mais tiverem dele. Perguntai a essas casas, a essas quintas, a essas herdades prezados; perguntai a essas salas e galerias douradas; a esses jardins, a essas estátuas, a essas fontes, a essas alamedas e bosques artificiais, cujos frutos são somente à sombra: perguntai-lhes de quem foram, e de quem são, e de quem hão de ser? Isto é o que sucede aos que acabam o seu mundo antes que o mundo se acabe. Sabem o que deixam, mas não sabem para quem: “Et ignorat cui congregabit ea”. Ou para o pródigo, que o há de dissipar, ou para o estranho, que o não há de agradecer, ou para o poderoso, que com violência o há de ocupar, ou para o inimigo, que com o vosso há de triunfar e crescer, ou para um pleito eterno, em que tudo se há de consumir. Quanto mais estimariam os que assim acabam que se sepultasse com eles tudo o que possuíam, como se há de sepultar com os do dia do Juízo?
Mais. Um dos maiores rigores que tem a morte é ser apartamento: apartamento e despedida geral de todos os que amáveis e vos amavam. Assim o ponderou el-rei Agag, vendo-se condenado à morte pelo profeta Samuel: “Siccine separat amara mors?! É possível, morte amarga, que assim me apartas? Assim. Apartava-o da mulher, dos filhos, dos vassalos, dos amigos e de tudo o que amava, ou de quem era amado na vida. E a este apartamento chamam com razão a maior amargura da morte: “Amara mors”. A morte no dia do Juízo não tem esta amargura, nem esta dor; porque ainda que seja morte, não é apartamento. Todos então há de ir juntos, sem ter de quem levar saudades, nem a quem as deixar. O dia do Juízo, diz Cristo, que há de ser como o dilúvio de Noé: “Sicut fuit in diebus Noé”. E considerou discretamente Santo Agostinho, que naquela desgraça geral do dilúvio, morriam os homens com uma grande consolação, que era não deixar neste mundo quem os chorasse. Esta mesma consolação hão de ter no dia do Juízo todos os que então morrerem. Porém os que morrem agora, não só têm a desconsolação contrária, mas muitas vezes dobrada. Apartam-se dos amigos e dos inimigos, e não só deixam depois de si quem chore sua morte, se não também que se alegre com ela, que não é menor sentimento: “Delectasti inimicos meos super me”.
Finalmente, no dia do Juízo há de se acabar a vida com o mundo; mas com o mesmo mundo se hão de acabar também os encargos da vida; porém no dia da morte acaba-se o mundo para a vida, mas não se acaba para os encargos. Os encargos da vida, que mais inquietam e afligem na morte, hão de se acabar com o mundo; porque então não há de haver requerimento de credores, nem satisfação de criados, nem acomodamento de filhos, nem disposição da casa, nem dívidas, nem restituições, nem nomeação de herdeiros, e testamenteiros, nem testamentos, nem codicilos, nem mandas ou demandas (tantas quantas são as cláusulas), nem sepultura, nem funerais, nem tantas outras perturbações e embaraços, que primeiro afogam a alma, do que ela saia do corpo. Tudo isto, e infinitas outras coisas de aflição, da moléstia, do escrúpulo e do risco da salvação concorrem e se atravessam na hora da morte. Mas nenhuma delas há de haver no dia do Juízo; porque todas acabam com o mundo, que totalmente acaba; e não como gora, que acaba para a vida, e não para os encargos dela. Vede se é mais trabalhoso e mais estreito este dia. Por isso, dizia Davi: “Omnis consummationis vidi finemlatum mandatum tuum nimis”. Olhei, Senhor, para o dia em que se há de acabar o mundo, e então me pareceu a vossa lei muito larga; porque todas as estreitezas, impostos, e angústias, em que agora nos põe a lei de Deus na hora da morte, no dia do Juízo, em que tudo acaba com o mundo, também elas cessam e se acabam.
(Quarta parte do sermão, proferido em 1652, na Capela Real, em Lisboa, publicado no livro “Sermões”, volume I, coleção “Obras completas do Padre Antonio Vieira”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1951).
* O Padre Antonio Vieira, além de ser excelente sacerdote, foi um dos maiores, se não o maior estilista em língua portuguesa. Seu estudo é obrigatório a todos os que tenham a pretensão de escrever corretamente e bem.
* Por Padre Antônio Vieira
PARTE IV
Temos visto quando há de ser certamente o dia do Juízo; e como é hoje, amanhã, e todos os dias; porque o Juízo que se faz no dia da morte, é o mesmo, e não outro que o Juízo final. Agora descendo às circunstâncias de um e outro Juízo: se acaso vos parece que as do Juízo final são mais espantosas e horríveis, digo que, também, neste conceito vos enganais. Muito mais rigorosas, muito mais terríveis, e muito mais para temer, são as circunstâncias do dia do Juízo de agora, de que hão de ser as do que vulgarmente se chama dia do Juízo.
Primeiramente, o que faz grande horror na consideração do Juízo final, é que naquele dia há de acabar este mundo, a que estamos tão pegados. E não cuidamos nem advertimos, que também no dia da morte, se acaba o mundo. Que importa que o mundo se acabe para mim, ou para todos? Que importa que o mundo se acabe para mim ou eu para ele? São Paulo, descrevendo este mundo, para nos desafeiçoar de suas vaidades, diz que é como um teatro, em que as figuras cada uma entra a representar o seu papel, e passa: “Preterit enim figura hujus mundi”. Não diz o Apóstolo, que passa o mundo, se não as figuras; porque as figuras vão-se, e o teatro fica. Alude à sentença do Espírito Santo: “Generatio praeterit, generatio advenit, terra autem in aeternum stat”. Uns nascem, outros morrem; uns vêm a este mundo, outros saem dele, e o mundo como teatro destas representações, sempre está no mesmo lugar, e não se move. Contudo, São João na sua primeira epístola diz que não só nós, os amadores do mundo, somos os que passamos, se não que também o mesmo mundo passa; “Et mundus transit, et concupiscentia ejus”. Pois se o mundo sempre está e permanece firme, e ainda que nós passemos, ele não se move; como diz São João, que também o mundo passa: “Et mundus transit”? Porventura encontra-se a doutrina dos dois Salomões da Igreja, Paulo e João? Não. Ambos por diferentes termos dizem a mesma verdade. Como nós, os que vivemos neste mundo, passamos, e não permanecemos, ainda que o mundo permaneça, também elçe passa: “Et mundus transit”. Não passa o mundo para si, mas passa para nós. Tanto que nós passamos desta vida, também ele passa: tanto que nós acabamos, também ele acaba. Para os que cá ficam, dura e permanecem; para nós acabou juntamente conosco. E senão perguntai aos que morreram, se há para eles mundo, ou alguma coisa do mundo? Se navegavam, acabou para eles o mar; se lavravam, acabou-se a terra; se negociavam, acabaram-se os tratos; se militavam, acabaram-se as guerras; se estudavam, acabaram-se os livros; se governavam o secular ou eclesiástico, acabaram-se as varas, os tribunais, as coroas, as mitras, as púrpuras, as tiaras; tudo se acabou naquele momento. Nem para os reis, nem para os papas, que foram senhores do mundo, há já mundo, porque como eles acabaram e passaram, também o mundo passou e acabou para eles.
Copérnico, insigne matemático do próximo século, inventou um novo sistema do mundo, em que demonstrou, ou quis demonstrar (posto que erradamente), que não era o sol que se movia e rodeava o mundo, senão que esta mesma terra em que vivemos, sem nós o sentirmos, é a que se move, e anda sempre à roda. De sorte que, quando a terra dá muita volta, então descobre o sol, e dizemos que nasce, e quando acaba de dar a outra meia volta, então lhe desaparece o sol, e dizemos que se põe. E a maravilha desse novo invento é que na suposição dele corre todo o governo do universo, e as proporções dos astros e medidas dos tempos , com a mesma pontualidade e certeza com que até agora seria. O mesmo passa sem erro, e com verdade, nesta passagem nossa, e do mundo. Escolhei duas opiniões qual quiserdes. Ou seja o sol que se move, ou nós que nos movemos; ou o sol se ponha para nós, ou nós para ele, os efeitos são os mesmos. Ou no dia do Juízo o ocaso seja do mundo, ou no dia da morte seja meu; para o mundo, tudo vem a ser o mesmo, porque tudo acaba. Assim como o mundo hoje ainda não é para os que hão de nascer, porque eles ainda não são, assim o mesmo mundo já não é para nós, quando morremos, porque já não somos.
Daqui se segue com evidência que também hoje, amanhã e cada dia, é o fim do mundo. Agora vede com a mesma evidência, quanto mais para temer, e quanto mais para desconsolar é este primeiro fim do mundo no dia da morte, do que há de ser o último dia do Juízo. Sêneca disse que é grande consolação acabar juntamente com o mundo: “Solatium est grande cum universo uma rapi”. Disse mais Sêneca do que entendeu, porque não teve conhecimento do dia do Juízo. Mas em que consiste esta consolação? Consiste em que no dia do Juízo, se o mundo acaba para mim, acaba também para todos. No mal, que é de todos, perde-se a comparação; e onde não há comparação, não há miséria: “Nemo miser, nisi comparatus”. Na morte de agora não é assim. Acaba-se o mundo para mim, mas para os outros não acaba. Aqueles morrem, quando já ninguém pode viver; eu morro e deixo os outros vivendo,. Isto é padecer a morte própria, e mais a vida alheia. No dia do Juízo não há de haver esta dor, porque ninguém se poderá queixar de se lhe acabar o mundo e a vida, quando igualmente se há de acabar para todos, ainda para os que nasceram no mesmo dia. Então, diz São João no Apocalipse, que se há de ouvir a voz de um anjo, o qual diga e apregoe que se acabou o tempo para sempre: “Quia tempus non erit amplius”. O tempo não é outra coisa se não a duração do mundo. Assim como o tempo começou com o mundo, assim há de acabar com ele. E acabar um homem o seu mundo, quando se acaba o mundo; acabar os seus dias, quando se acaba o tempo; como pode ser matéria de sentimento, quando era o mais a que podia aspirar o desejo? E isto é o que sucederá aos que acabarem a vida no dia do Juízo. Mas que se acabe o mundo, e o tempo, e os dias para mim, quando há mundo e tempo, e anos para os outros? Esta é uma grande diferença de dor com que agora acaba o mundo para nós, ou nós para ele. Vamos a outra.
Uma das grandes penas com que Deus ameaçava pelo profeta Amós os ricos e poderosos daquele tempo (como pudera também ameaçar os do nosso) era que edificavam palácios magníficos, e casas de prazer para delícia; mas que não as haviam de lograr: “Domus quadro lapide edificabitis, et non habitabitis in eis: vineas plantabitis amantíssimas, et non bibetis vinun earum”! Esta razão de mágoa corre igualmente em um e outro fim do mundo. Assim os que morrerem então, como os que morrem agora, nenhuma coisa hão de lograr do que com tanto gosto e gasto, e com tanto esquecimento do fim da vida, trabalham, ajuntam, e edificam para ela. Mas esta mesma mágoa há de ser muito menor para os do dia do Juízo. Aquele rico do Evangelho, que fazia conta de viver muitos anos, e morreu na mesma noite, perguntou-lhe a voz do céu: “Et quae parasti, cujus crunt?” E tudo isto que ajuntaste, de quem há de ser? Os que acabarem com o mundo no dia do Juízo, estão livres desta pena; porque não hão de ter a dor de que outros logrem o que eles trabalharam: “Non aedificabunt, et alius habitabit: non plantabunt, et alius metet”, diz o profetas Isaías, e o conta por uma grande felicidade. Mas esta não a podem ter os que morrem enquanto dura o mundo, e tanto menos, quanto mais tiverem dele. Perguntai a essas casas, a essas quintas, a essas herdades prezados; perguntai a essas salas e galerias douradas; a esses jardins, a essas estátuas, a essas fontes, a essas alamedas e bosques artificiais, cujos frutos são somente à sombra: perguntai-lhes de quem foram, e de quem são, e de quem hão de ser? Isto é o que sucede aos que acabam o seu mundo antes que o mundo se acabe. Sabem o que deixam, mas não sabem para quem: “Et ignorat cui congregabit ea”. Ou para o pródigo, que o há de dissipar, ou para o estranho, que o não há de agradecer, ou para o poderoso, que com violência o há de ocupar, ou para o inimigo, que com o vosso há de triunfar e crescer, ou para um pleito eterno, em que tudo se há de consumir. Quanto mais estimariam os que assim acabam que se sepultasse com eles tudo o que possuíam, como se há de sepultar com os do dia do Juízo?
Mais. Um dos maiores rigores que tem a morte é ser apartamento: apartamento e despedida geral de todos os que amáveis e vos amavam. Assim o ponderou el-rei Agag, vendo-se condenado à morte pelo profeta Samuel: “Siccine separat amara mors?! É possível, morte amarga, que assim me apartas? Assim. Apartava-o da mulher, dos filhos, dos vassalos, dos amigos e de tudo o que amava, ou de quem era amado na vida. E a este apartamento chamam com razão a maior amargura da morte: “Amara mors”. A morte no dia do Juízo não tem esta amargura, nem esta dor; porque ainda que seja morte, não é apartamento. Todos então há de ir juntos, sem ter de quem levar saudades, nem a quem as deixar. O dia do Juízo, diz Cristo, que há de ser como o dilúvio de Noé: “Sicut fuit in diebus Noé”. E considerou discretamente Santo Agostinho, que naquela desgraça geral do dilúvio, morriam os homens com uma grande consolação, que era não deixar neste mundo quem os chorasse. Esta mesma consolação hão de ter no dia do Juízo todos os que então morrerem. Porém os que morrem agora, não só têm a desconsolação contrária, mas muitas vezes dobrada. Apartam-se dos amigos e dos inimigos, e não só deixam depois de si quem chore sua morte, se não também que se alegre com ela, que não é menor sentimento: “Delectasti inimicos meos super me”.
Finalmente, no dia do Juízo há de se acabar a vida com o mundo; mas com o mesmo mundo se hão de acabar também os encargos da vida; porém no dia da morte acaba-se o mundo para a vida, mas não se acaba para os encargos. Os encargos da vida, que mais inquietam e afligem na morte, hão de se acabar com o mundo; porque então não há de haver requerimento de credores, nem satisfação de criados, nem acomodamento de filhos, nem disposição da casa, nem dívidas, nem restituições, nem nomeação de herdeiros, e testamenteiros, nem testamentos, nem codicilos, nem mandas ou demandas (tantas quantas são as cláusulas), nem sepultura, nem funerais, nem tantas outras perturbações e embaraços, que primeiro afogam a alma, do que ela saia do corpo. Tudo isto, e infinitas outras coisas de aflição, da moléstia, do escrúpulo e do risco da salvação concorrem e se atravessam na hora da morte. Mas nenhuma delas há de haver no dia do Juízo; porque todas acabam com o mundo, que totalmente acaba; e não como gora, que acaba para a vida, e não para os encargos dela. Vede se é mais trabalhoso e mais estreito este dia. Por isso, dizia Davi: “Omnis consummationis vidi finemlatum mandatum tuum nimis”. Olhei, Senhor, para o dia em que se há de acabar o mundo, e então me pareceu a vossa lei muito larga; porque todas as estreitezas, impostos, e angústias, em que agora nos põe a lei de Deus na hora da morte, no dia do Juízo, em que tudo acaba com o mundo, também elas cessam e se acabam.
(Quarta parte do sermão, proferido em 1652, na Capela Real, em Lisboa, publicado no livro “Sermões”, volume I, coleção “Obras completas do Padre Antonio Vieira”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1951).
* O Padre Antonio Vieira, além de ser excelente sacerdote, foi um dos maiores, se não o maior estilista em língua portuguesa. Seu estudo é obrigatório a todos os que tenham a pretensão de escrever corretamente e bem.
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