terça-feira, 2 de março de 2010




A visita

* Por Risomar Fasanaro

Eu estava jogando futebol no campinho perto de casa, quando minha avó mandou me chamar porque logo mais meu pai e meu avô chegariam, e eu precisava me arrumar para o jantar. Entrei e fui direto tomar banho. Ainda faltava mais de uma hora para eles chegarem, não sei que implicância era aquela de me chamar quando eu estava no melhor do jogo.

Era uma tarde quente, sufocante. Minha mãe abanava minha avó com um leque, enquanto ela lia “Dom Casmurro”. Eu estava montando armas de guerra com o Lego, quando a empregada veio avisar que havia uma moça lá fora que queria falar com minha avó. Quem é? Ela perguntou, e a empregada disse que era uma moça morena clara, muito bonita. Disse se chamar Luísa.
-Não conheço ninguém com esse nome.
- Mas ela disse que precisa falar com a senhora, que é urgente.
-Mande-a entrar, então.

Quando entrou na sala, a moça fez um leve gesto como se quisesse voltar, como se algo a impelisse a entrar, e ela relutasse a obedecer.

Do ângulo em que eu me encontrava, meio deitado no chão, vi primeiro os sapatos. Os saltos estavam tão gastos que aparecia o interior da madeira por entre o couro que levantava uma pequena aba. Havia um pouco de barro seco preso aos saltos. Ela usava umas meias grossas, que hoje deduzo, deviam ser de algodão, bem ordinárias, diferentes das meias de nylon que minha mãe e minha avó usavam. Mas delineavam pernas muito bem torneadas.

Levantei a cabeça e vi que ela era bonita. Muito bonita. Mesmo eu sendo apenas um menino já entendia essas coisas, e nunca vira uma moça tão bonita naquelas redondezas. O vestido era de tecido simples, com estampas miúdas, escuro, mas justo o suficiente para se perceber que tinha um corpo perfeito. Morena, trazia os cabelos presos no alto da cabeça, o que lhe dava um ar altivo.

Nossos olhos se encontraram, e pude perceber que os seus eram grandes e escuros com cílios negros e espessos. Não sei se foram os olhos ou o jeito de olhar, mas aquele instante ficou gravado em mim para sempre.

Ela parou próximo à porta em silêncio e minha avó a chamou: aproxime-se.
-O que você deseja?

Provavelmente, minha avó vendo que a mulher tinha idade para ser sua filha, tratava-a por você. A moça deu alguns passos, parou diante de minha avó, apertava uma das mãos na outra, e com voz quase inaudível, disse:
-Queria falar com a senhora.
-Pois pode falar!
-É que é assunto particular...

Olhou para minha mãe, para minha madrinha, e era como se pedisse para ficar sozinha com minha avó. Vendo que ninguém arredava pé da sala, minha avó pediu que saíssemos. Fiz de conta que ninguém me pedira nada, que eu era apenas um menino, e poderia ficar ali. Mas minha avó me mandou ir para o quintal. Comecei a juntar as peças do Lego bem devagar, enquanto a mulher se aproximava muito de minha avó e falava quase que cochichando:
-...Tempo...queria...foi...

Não consegui ouvir mais nada, por mais que apurasse os ouvidos. Tive de ir para o quintal e não vi quando a moça saiu. Mas quando voltei à sala, meu pai e meu avô já tinham voltado do trabalho. E era como se todo o verão houvesse entrado naquela casa.

Naquela noite minha avó não se sentou à mesa do jantar. E nunca mais fez as refeições com a família.
A
mulher forte que ajudava a colher café, que fazia pão, fubá, que junto com Basinha, a cozinheira, preparava comida para vinte pessoas, de repente ficara frágil, triste, acabrunhada, e já não lia romances, nem fazia tricô.

A casa ficou por conta das empregadas. Basinha decidia o que iriam comer, que toalha se poria na mesa do jantar, que flores se deveria comprar para colocar nos vasos... Tudo.

A mulher falante que fora minha avó, se transformara em alguém monossilábico, pelos cantos do casarão. Às vezes eu tinha a impressão de que murmurava palavras sem nexo. Coisas que vinham de um outro mundo. O mundo que ela passara a habitar e que era só seu.

Começou a emagrecer e embora os médicos não diagnosticassem nenhuma doença, foi definhando, definhando, e morreu um ano depois daquela visita.

Na missa de sétimo dia de minha avó, voltei a ver aquela mulher. Foi na praça em frente à igreja, enquanto as pessoas se despediam, que eu a vi.

Estava com os cabelos soltos e um vestido estampado de cores vivas. Conversava com outra moça, ao lado da igreja, e pelo clima, deviam ser amigas. Quando passei, ela me olhou meio de lado. E reconheci o mesmo olhar que vira naquela tarde, o olhar que ainda hoje busco em todas as mulheres, e jamais o encontrei.

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

10 comentários:

  1. Independente do que ela tenha dito
    fez um bom estrago, simplesmente
    roubou o sopro de vida da avó.
    Decepção? Pode ser. Só sei que
    a tristeza esmaga, mata.
    Belo texto Riso.
    Beijos

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  2. Posto que com um dia de atraso, parabéns à querida aniversariante. Que Deus a conserve com saúde e com todo esse imenso talento que você tem. Beijos.

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  3. Gostei do texto.
    Aproveitando o ensejo, Pedro não esqueceria o aniversário de quem tem MAR
    até no nome.

    Parabéns,
    Risomar.

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  4. Parabéns, Risomar, pelo belo texto e pelo aniversário. Beijos

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  5. Texto gostoso.
    Um segredo capaz de roubar a alegria de viver. Geralmente as pessoas mais frágeis e sensíveis são aquelas que aparentam fortaleza.
    Belo texto !
    Parabéns pelo aniversário.
    bj

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  6. Risomar!

    Seus textos tem visgo mulher
    prendem a gente.
    Felicidades e muita paz na sua vida.
    Beijos

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  7. Nubia, Pedro, José Calvino, Evelyne, Celamar, obrigada pelo incentivo e pelos votos de felicidades.
    Beijos em todos vocês!

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  8. Eu não sabia que você completou mais um ano. Espero que em lugar de pizza tenha havido muito bolo de rolo na comemoração.
    De uma forma ou de outra, parabéns, amiga.
    Que venham mais períodos de criação Risomar.
    Abraço.

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  9. Quanto mistério. A má notícia abreviou a vida daquela avó, ainda tão forte e atuante. Que pena.

    Parabéns Risomar, pelo aniversário e pelo texto. São coisas muito diferentes, mas que podem ser ser elogiadas em dupla.

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  10. Mara, Urariano

    Obrigada pelo carinho, pela amizade!
    Abraços
    Risomar

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