Não
quero esse transtorno de volta
*
Por Gustavo do Carmo
Estava
feliz com a primeira namorada que conquistou, aos trinta e cinco anos
de idade. Aparentemente recuperado de uma depressão e de um
transtorno de ansiedade severo, Manieri conheceu Melina, de 28 anos,
em um aplicativo de relacionamento no smartphone. Ele a marcou pela
sua beleza e foi retribuído. Combinaram.
Trocaram
mensagens e marcaram um encontro. Logo no restaurante começaram a
namorar. A noite terminou em um motel. Tudo como manda o figurino das
propagandas de agências e sites de namoro, que não preciso
descrever aqui.
Melina
visitou, pela primeira vez, a casa de Manieri em um domingo. Conheceu
os seus pais, sua irmã, seu cunhado e seu sobrinho bebê. Em
seu quarto, ele lhe mostrou a sua coleção de carros em miniatura e
livros. Ela ficou encantada, abriu a porta de um BMW, folheou a
biografia de um escritor português e viu a capa do romance de um
psicólogo. Tirou de ordem.
Discretamente,
Manieri arrumou os livros para a posição exata em que estavam
antes. Também mudou a inclinação do seu carrinho na estante do seu
quarto. Melina viu e mordeu os lábios, tentando controlar o
nervosismo. Foi ao banheiro. Ao lavar as mãos, amarrotou
a toalha de mão do suporte.
O
casal saiu do quarto e foi almoçar na sala, com a família, junto
com a família dele. Antes, Melina tinha voltado ao banheiro e
encontrou a toalha que amarrotara perfeitamente dobrada no suporte. A
garrafa do sabonete líquido, que também tinha deixado torta, com o
rótulo para a direita e o bico para trás, estava perfeitamente
alinhada, com rótulo e bico para frente.
Manieri
estava visivelmente incomodado com a presença do sobrinho à mesa.
Tremia a cada gemido do bebê. Mas, como a namorada estava em sua
casa, controlou-se. Serviu-se de bife à milanesa, farofa e duas
rodelas de tomate. Ao mesmo tempo, Melina estava servindo-se de arroz
e feijão e perguntou se ele queria.
—
Quer
arroz e feijão, amor?
–
Não.
Depois eu como.
A
mãe entrou na conversa:
—
O
Maninho só come arroz e feijão separado da comida. E ainda tem que
lavar o prato antes. Desde pequeno ele é assim.
—
Mãe!
Melina
sorriu amarelo. Depois dessa, vaticinou para si mesma: seu novo
namorado tinha Transtorno Obsessivo Compulsivo.
O
pai de Manieri contava as histórias de dificuldades que passou na
vida para a futura nora quando o filho, ao ver uma ex-colega de
faculdade fazendo uma reportagem no telejornal, pediu para
desligar a televisão. Saiu da mesa, sem pedir licença e foi para o
quarto abruptamente quando o sobrinho começou a chorar. Ele já
tinha terminado de almoçar.
Pedindo
licença para a família de Manieri, Melina saiu da mesa e foi até o
quarto do namorado, que tinha fechado a porta, que ela bateu com três
toques, perguntando se poderia entrar.
—
Claro,
amor.
—
Por
que você saiu correndo da sala?
—
Ah,
é o chato do meu sobrinho que começou a chorar. Eu odeio choro de
criança.
—
Bem,
eu já vou.
—
Fica
mais.
—
Não.
Amanhã eu trabalho e acordo cedo. Preciso ir. Você não vai me
levar até à porta?
—
Vou
esperar o meu sobrinho parar de chorar. Espera comigo?
—
Ele
já parou.
—
Então
vamos.
Melina
se despediu da família de Manieri. Na semana seguinte, foi a vez
dele conhecer a mãe da moça. Enquanto esteve na casa dela, Manieri
lavou a mão 50 vezes e o rosto 20 vezes. Também arrumou a toalha de
rosto 25 vezes. Foi o que viu e contou a mãe de Melina.
No
almoço, a futura sogra adivinhou que ele gostava de lasanha, mas
estranhou a sua mania de comer arroz e feijão separado. Melina era
órfã de pai e filha única. Por isso, estiveram apenas os três na
casa. Dona Mercedes deixou o casal sozinho na sala assistindo a
televisão.
Como
visita, Manieri teve o direito de administrar o controle remoto. Na
meia hora em que Melina aninhou-se ao seu colo, ela percebeu que ele
mudou de canal várias vezes. Um porque reapareceu a sua ex-colega de
faculdade, outro só falava de violência, um terceiro apareceu um
comercial de crianças e o quarto só deu notícias de São Paulo.
Pela
primeira vez, impaciente com o namorado, Melina pediu:
—
Dá
pra parar de mudar de canal toda hora, amor? Eu quero ver televisão.
—
Desculpa.
Bem, está na hora de eu ir. Está escurecendo e a minha mãe está
sozinha em casa.
—
Eu
nem vou pedir pra você ficar, porque, realmente, está ficando
escuro e preciso me preparar para o plantão na redação logo mais.
Depois
deste encontro, Melina não procurou mais Manieri, que pensou que
fosse por causa da sua rotina. Ela ficou sem jeito de terminar o
namoro. Viveu dos treze aos vinte e sete anos com transtorno
obsessivo compulsivo e transtorno de ansiedade. Foi internada aos
vinte e cinco, quando passou doze horas imóvel embaixo do chuveiro.
Foram dois anos de tratamento. Recuperou-se. Conseguiu emprego na
redação de um jornal.
Estava
realizada na carreira. Ganhando bem. Jornalista, preparava-se para
trabalhar na televisão quando conheceu Manieri. Também estava feliz
em tê-lo conhecido. Até conhecer o seu transtorno obsessivo
compulsivo. Repugnou essa mania de novo na sua vida. Preferiu
afastar-se dele. Nem a amizade levou adiante.
Ela
precisava contar para o agora ex-namorado. Não sabia como. Não
queria mais vê-lo. Decidiu escrever um e-mail.
Manieri,
Amo-te
muito e peço que não me julgue. Só que, infelizmente, não podemos
continuar juntos. Nem como amigos. Eu me recuperei de um transtorno
obsessivo compulsivo, popularmente conhecido como TOC, que usurpou
quatorze anos da minha vida.
Estou
recuperada e me realizando no trabalho. Fui chamada para ser repórter
da mesma emissora da sua ex-colega de faculdade, conforme me contou
outro dia. Também estava feliz por estar te namorando. Mas, ao te
conhecer na intimidade da sua casa, vi que o pesadelo que quase
arruinou a minha vida estava voltando para mim. Não. Não é você.
É o seu TOC, a mesma doença que eu tive.
Não
quero esse transtorno de volta. Não quero conviver com ele
novamente. Mesmo que ele esteja em outra pessoa que amo tanto. Eu
percebi as suas superstições e manias. Vi você reorganizando
toalhas e potes de sabonete. Vi você mudando a inclinação dos seus
carrinhos em miniatura depois que eu mexi. Vi vários cartões de
crédito vencidos na sua mesa de computador. Vi algumas coleções
desnecessárias de papel.
Senti
que você não gosta de crianças. Vi você comendo em prato separado
e dividindo a comida no mesmo. Vi você mordendo o dedo com força,
para se machucar. Na última vez em que estive com você, mudaste o
canal umas dez vezes. Não dá. Perdão. Não quero conviver com você
para ter esse pesadelo de novo.
Faça
um tratamento. Será melhor para você. Antes que seja tarde demais.
Antes que machuque as pessoas que te amam: seus pais, sua irmã, seu
cunhado... seu sobrinho.
Boa
sorte. Sem ressentimentos
Melina
Alvarardo
Depois
de ler o e-mail, Manieri quebrou o seu quarto todo. Toda a sua
coleção de carrinhos foi jogada ao chão. As revistas rasgadas. Os
móveis chutados. Trancou-se no banheiro. Passou quinze horas embaixo
do chuveiro, preocupando os seus pais idosos. Teve acesso de fúria.
Crise de pânico. Foi internado.
Passou
um ano. Já tinha recebido alta da clínica havia alguns meses.
Escreveu um livro sobre o transtorno obsessivo compulsivo sob o ponto
de vista de um paciente e não de um médico especialista. Conseguiu
uma editora para publicar, com apoio da psiquiatra que o atendeu.
Recebeu
a visita de Melina, que queria lhe dar uma notícia séria:
—
Tive
um filho e ele é seu. A gestação coincidiu com o dia do nosso
primeiro encontro.
—
Bem,
Melina, eu deveria questionar se esse filho é meu mesmo, depois de
tudo o que você me fez. Mas ao mesmo te agradeço por me ligar o
sinal de alerta. E seria muito egoísmo da minha parte renegar um
filho que pode ser o segundo neto dos meus pais. Respondeu, com uma
surpreendente calma e segurança.
—
O
filho é seu mesmo! É a sua cara. Só não falei nada porque, como
já disse, não queria te trazer de volta.
—
Isso
aí já foi sacanagem da sua parte. Deveria ter falado com a minha
família, pelo menos.
—
A
sua família não quer me ver nem pintada de ouro.
—
Também.
Com o que você fez comigo. Tem foto dele aí?
—
Tenho.
Melina
mostrou o seu smartphone. Manieri comparou as fotos com as suas de
quando tinha um ano, que também estavam em uma rede social.
Realmente Tarcísio Henrique era a cara de Manieri. Perguntou se ele
já tinha padrasto. Melina respondeu que não. Todos os homens que
conheceu não queriam se envolver com uma mulher com filho.
—
Vai
continuar afastada de mim para o seu TOC não voltar?
—
Eu
que pergunto. Pois agora o curado é você. O transtorno voltou para
mim.
Beijaram-se
apaixonadamente. Casaram-se. O livro de Manieri fez sucesso e o
deixou rico. Ela foi promovida a apresentadora de TV, mesmo com TOC.
Tiveram mais um filho, desta vez, uma menina: Maniara. Formaram uma
família feliz. Os quatro com transtorno obsessivo compulsivo.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração.
Publicou o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de
São Paulo-SP) e a coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess
- http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
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