Parceria
desconhecida
O
papel do revisor, para que determinada obra literária consiga se
impor pela qualidade, sem que haja cochilos de nenhuma espécie no
texto, ou seja, sem que escapem, principalmente, erros ortográficos
(que são uma tragédia!) e gramaticais (bastante comuns) é dos
maiores e nem sempre é devidamente reconhecido. Raros são os que
têm seus nomes registrados nos livros que revisam.
A
necessidade dessa figura, frise-se, não significa que o escritor não
tenha domínio sobre os cânones que regem seu idioma. Ocorre que o
autor de um determinado texto, por mais atento que seja, não
consegue detectar todos os erros que comete (quando os comete),
geralmente por causa da pressa de dar uma obra por concluída. Daí o
bom-senso recomendar que ele recorra aos préstimos de um revisor.
Pergunto:
é possível alguém, que não seja lá grande conhecedor de
gramática, ser bom escritor? Minha resposta é: “sim”. Claro que
o ideal é que quem se aventura nesse perigoso campo das ideias
domine com perfeição as regras do seu idioma. Nem todos dominam. E
ainda assim... alguns se destacam tanto pelo estilo, quanto pela
criatividade. Dizem que Mário de Andrade tinha dificuldades
terríveis com algumas regras gramaticais. Poderia citar uma dezena
de outros escritores no mesmo caso. E a maioria se consagrou. Vocês
não acreditam? Pois vejam este exemplo.
Acabei
de ler notícia, divulgada pela Agência France Press, dando conta
que a escritora inglesa Jane Austen “conhecia tão mal a gramática
e a ortografia que suas obras precisaram ser reescritas por um
revisor”. Fiquei pasmo! Conheço essa autora, de quem já li o
livro “Orgulho e preconceito”, e seus textos sempre me pareceram
perfeitos e a salvo de quaisquer reparos. Quem fez, no entanto, a
descoberta de que ela não dominava adequadamente as regras do seu
idioma foi a professora da Universidade de Oxford, Kathryn
Sutherland.
A
meu ver, isto não desmerece em nada a magnífica obra de Jane
Austen. Ademais, tendo ciência de suas dificuldades, ela foi humilde
o suficiente para recorrer aos préstimos do editor e revisor William
Gilford. E este fez direitinho o seu trabalho. Tanto que leitores e
críticos literários sempre consideraram que a criativa escritora
tinha um “estilo perfeito”. Seu irmão Henry chegou até a dizer,
em uma entrevista, dada em 1818: “Tudo sai perfeito da sua pena”.
É possível, contudo, que não soubesse das dificuldades gramaticais
da irmã. Ou, quem sabe, foi movido pela saudade, já que fez essa
constatação um ano após a morte da escritora, que ocorreu em 1817.
E
como a professora Sutherland chegou à conclusão das dificuldades de
Austen para escrever? Óbvio, lendo os originais não revisados (e
não publicados) do que ela escreveu. E não foi pouca essa leitura.
A mestra leu 1.100 páginas, o que é mais do que suficiente para se
concluir como determinada pessoa escreve. Ao cabo dessa leitura, ela
disse à Agência France Press, ao divulgar suas conclusões: “Os
manuscritos não publicados de Jane Austen acabam com a reputação
de perfeição da escritora de várias formas: há manchas, rasuras,
desordem. Pode-se ver a criação se formar neles e, no caso de Jane
Austen, descobre-se uma maneira antigramatical de escrever, que
contrasta com o estilo polido de suas obras publicadas”.
Fica,
pois, assente que antes de você publicar um livro, é prudente que o
entregue aos cuidados de um revisor. Esse sujeito, todavia, tem que
ser muito bom. Já fui chefe de revisão de um jornal de grande
circulação, no meu início de carreira, e conheci muitos que eram
uma tragédia. Fazia-se necessária uma revisão da sua revisão, tão
desatentos que eram.
Anos
depois, tive um incidente desagradável com determinado revisor que
se julgava autossuficiente
e que cometeu uma gafe sem tamanho, que quiseram me imputar (mas não
conseguiram). Foi num período em que fui editor de noticiário
internacional. Corria o ano de 1990, e Saddam Hussein ainda era o
todo-poderoso do Iraque. No norte desse país, os curdos faziam nova
rebelião em sua milenar luta pela independência. Mas as tropas do
governo iraquiano sufocaram, a ferro e fogo, esse levante, deixando
alguns milhares de mortos.
Ao
noticiar esse ataque, destaquei, como manchete da página: “Tropas
de Saddam atacam curdos com armas químicas”. Qual não foi o meu
dissabor, todavia, quando, no dia seguinte, ao abrir o jornal, leio
esta “abobrinha”, esta atrocidade: “Tropas de Saddam atacam
surdos
com armas químicas”!!!
Fiquei furioso, como seria de se esperar, porquanto nem se estivesse
bêbado escreveria tamanha barbaridade. E sabem o que aconteceu? O
imbecil do revisor achou que eu havia enlouquecido (ou era de uma
ignorância extrema, o que pioraria a situação) e havia grafado a
palavra “surdos” com “c”, em vez de “s”. Não passou pela
cabeça do indigitado sujeitinho que eu me referia à etnia que
habita o Norte do Iraque e Sul da Turquia e não às pessoas que têm
deficiências auditivas.
Mesmo
não sendo o autor da patacoada, tive que ouvir gozações a
propósito por muito tempo. Jornalistas e escritores têm dezenas,
centenas, milhares de histórias como a minha, envolvendo revisores.
Afinal, nem todos são competentes como William Gilford, que garantiu
o sucesso de Jane Austen e a fama que ela sempre gozou (e
provavelmente continuará gozando) de escritora perfeita, de estilo e
grafia a salvo de equívocos e tropeções.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Naquele tempo não havia o horroroso corretor de textos, que destrói qualquer conversa, e muito mais um escrito elaborado.
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