Como nasceu, viveu e morreu a minha inspiração
* Por
Raul Pompéia
Página
arrancada ao livro de lembranças de um futuro Esculápio.
Eu ia vê-la naquele
dia. O dia dos seus anos! Devia estar esplêndida. Ia completar o seu décimo
sétimo ano de um viver de alegrias. O meu presente era simples: uma gravatinha
de fita azul; mas havia de agradar-lhe. Era o meu coração quem o dava. Ela o
sabia. Sabia também que o coração de um estudante não é rico. Dá pouco, mesmo
quando dá... Ela desculparia.
Que noite ia eu passar!
Dançaríamos muitas vezes juntos, a começar da segunda quadrilha...
Preparei-me.
Empomadei-me; escovei-me; perfumei-me; mirei-me, etc., etc. Conclusão: estava
chic. Mas eram cinco horas e eu não queria chegar antes das sete. Fazer-me um
pouco desejado... o que é que tem?... Todavia faltava bastante tempo!... Em que
ocupar-me a fim de passar essas duas longuíssimas horas? Que fazer?...
Impaciência e dúvida; dois tormentos a me angustiarem...
Eu passeava pelo meu
quarto, deitando vagamente uns olhares pelos meus desconjuntados móveis:
aquelas minhas cadeiras, lembrando a careta de um choramingas a entortar o queixo;
a mesa, gemendo sob um mundo de livros desencapados e sebentos; o meu toilette,
quero dizer um velho compêndio de anatomia com uns frascos por cima e um
espelho pequeno pregado na parede; a minha cama, com a coberta a escorregar
languidamente para o chão... Continuava a passear. Olhei ainda uma vez para o
espelho e sorri-me, vendo lá dentro a minha gentil figura partida em quatro por
duas rachaduras cruzadas no vidro... Que fazer?...
Debrucei-me na
janela... Embaixo a rua, a atividade prosaica das cidades de alguma
importância: idas e vindas e mais vindas do que idas, por causa da hora que era
de jantar, (por tocar nisto... eu não tinha ainda jantado. É o que me cumpria
fazer; mas o meu plano era economizar um jantar, vingando-me à noite nos buffetes
da menina...) Meus olhos corriam pela rua como andorinhas brincalhonas. Depois
de percorrem o quarto, andavam pela rua em busca de resposta à minha pergunta:
- que fazer?...
Por fim foram esbarrar
no frontispício da igreja... Começaram a subir... Brincaram nas janelas;
contaram quantos vidros havia; examinaram os enfeites de arquitetura... Subiram
mais, percorreram os sinos, o zimbório e foram pousar no pára-raios.
Estavam quase no céu.
Daqui para ali, menos de um passo. Os olhos lá foram. Mergulharam-se erradios
no azul... Que fazer?
Ora... enfim! Estava
achada a resposta! Por que não veio ela mais cedo não o posso explicar.
Os meus olhos estavam
no céu.
Era uma tarde
encantadora. Que cor a do firmamento nessa hora! Que abóbada incomparável a
cobrir a rua!... Depois, aquelas nuvens mimosas, desfiando-se nos ares, como
brancas meadas de lá nuns dedos sedutores... O sol a descambar, batendo de
través na poeira levantada do chão pelos carros, que magníficas cortinas
desdobravam pelas janelas das habitações velando-as como que de douradas gazes.
No horizonte, por sobre a última linha de telhados e chaminés fumegantes, como
se ostentavam aquelas colinas de um azulado branco feitas vapores tênues; como
se recortavam sem fazer uma só volta que não fosse demorada e graciosa como as
curvas de esbelto corpozinho de donzela...
Oh! Do quarto para
fora, tudo o que se prendia aos céus por um raio de luz ou por uma ponta de
vaporoso véu, tudo respirava poesia...
Eu achara a resposta.
Que fazer?... Versos!... Feliz achado!... Um soneto ou alguns alexandrinos...
qualquer cousa que desse claro testemunho do meu amor. O laço de fita com que
eu ia mimosear o meu anjo era azul... Ótimo! Sobre o laço, um soneto!... Ouro
sobre azul! Com certeza não dançaríamos somente (eu e ela) trocaríamos o
primeiro beijo! Não esse beijo insípido que se dá a carregar aos zéfiros,
entregando-se-lhes nas pontas dos dedos, mas um ósculo açucarado de lábios
ardentes sobre a maciez de uma face. Um ideal realizado. Uma cousa assim como o
contato com um jambo que houvesse roubado o veludo ao pêssego...
- Bravo! Já estou quase
deitando verso de improviso! exclamei eu, notando a minha exaltação. Venha
papel! venha pena! Cérebro, soma-te com o teu companheiro, o coração! Não
brigueis desta vez como é de vosso costume... somai-vos um com o outro e vertei
nesta folha de papel alguma cousa que não horrorize a Petrarca... Espírito de
Dante, eu te evoco! vem com aquele fogo que em ti acendia a tua celeste
Beatriz! Dirceu, corre também em meu socorro! Poetas antigos e modernos, correi
todos! Musas, vinde com eles! Transportai-me nesses êxtases que vos deram a
imortalidade na memória dos homens!...
Nascera-me a
inspiração! Ia metrificar alguma cousa que devia maravilhar os críticos...
(aparte a modéstia: isto que escrevo não é para o público). Mas eu me sentia um
pouco acima de mim mesmo... Sem dúvida era essa sensação mística a que
experimentam todas essas cabeças de gênio, um momento antes de dar à luz
qualquer produção sublime...
Molhei a pena, com um
movimento nervoso. A minha impaciência (confesso-o) não era então para chegar à
casa do meu bem, era para gravar no papel aquilo que me ardia no crânio. Molhei
a pena...
Oh! desgraça! A infame
pena trouxe na ponta um pingo de tinta, trêmulo, ameaçador. Desviei-a
violentamente... foi a minha perdição...
Olhei triste para o meu
punho esquerdo... Estava descansado sobre a folha de papel, quando o pingo...
Maldição!... Ainda havia pouco, tão alvo, luzidio como porcelana... então, com
uma feia nódoa circular negra... negra, de quase uma polegada de diâmetro e
ainda a infiltrar-se pelo linho, a tomar cada vez mais vulto!...
Pobre camisa!...
estragada!... Mais pobre de mim... Esse pingo era uma catástrofe. Aquela camisa
era a única. Única! Triste verdade, cujas conseqüências me desesperavam.
- Adeus, meu anjo!
disse eu, sem poder engolir um soluço.
Já não me era possível
ir vê-la. Nem um companheiro morava comigo. Se morasse, talvez o mal fosse
remediável. Mas não! Não havia esperança!... Comprar outra? Onde? Era um
domingo... Com que dinheiro?... Era num fim de mês. Não havia esperança.
Aquele beijo que sonhei
num instante de ebriedade desfez-se-me no espírito como a má impressão de um R.
Não era só isto. A minha ausência seria notada pela menina. O que pensaria
ela?... Talvez que eu, por mesquinho, quis poupar-me a despesa de oferecer-lhe
qualquer cousa...
- Quando, gritei eu, aí
está o meu laço de fita de cinco mil réis...
Ainda mais. Um baile
leva a uma casa tantos pelintras... quem sabe se ela não se agradaria de algum
desses bolas, esquecendo-se de mim?... E teria razão. A abelha, se aqui não
encontra mel, vai buscá-lo acolá...
Momentos dolorosos os
que passei nessa tarde! Depois de todos os pensamentos que me assaltaram
brutalmente à primeira reflexão, foi que lembrei-me do meu soneto...
- Soneto, para onde tu
foste?...
Mais este golpe: - a
minha inspiração morrera. Eu não sentia mais a exaltação auspiciosa de alguns
minutos antes. Tudo perdido! Fora-se tudo!
Eu vi e jurá-lo-ei, se
me não acreditarem, eu vi essa corja do Parnaso, poetas e Musas, fugir-me do
quarto! Eu vi as sirigaitas de saias arregaçadas a correr, e os idiotas
irem-lhe após, sobraçando liras, como os traquinas das escolas públicas, quando
disparam pelas ruas, de ardósia ao sovaco...
Nessa mesma tarde, fui
à janela outra vez. Estava aflito e superexcitado. Parece-me, até, que tinha os
olhos molhados. Pus-me a ver os transeuntes. Cada um que passava, para os lados
na morada do objeto dos meus devaneios parecia um convidado de baile. Tortura.
Em seguida avistei a
maldita torre, por onde meus olhos haviam subido ao céu que me inspirava a
negrejada lembrança de poetar.
Para acabar. A desgraça
de que fora vítima fez-me esquecer o jantar, que positivamente era só o que eu
devia perder não indo à festa. Não comi e não reparei nisso. Tornou-se inútil
vingar-me da minha economia. Se neste particular não perdi, no resto ganhei.
A minha querida
(soube-o depois) nem perguntou por mim na festa. Esteve alegre. Encontrou quem
lhe agradasse (um sujeitinho com quem se vai casar). Melhor. Já estou consolado
da desgraça, um mal que me veio para bem. Livrou-me de uma levianazinha. O
aborrecimento que hoje me causam os mesmos objetos que tanto me entusiasmaram
naquela tarde veio matar umas pequenas veleidades poéticas que ainda acatava.
Estou descrente. Agora acabou-se... Só estudo; ergo: ganhei... Estou na
expectativa de um fim de ano esplêndido.
Mais uma palavra. O
laço de fita azul... guardo-o. É um talismã.
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Fonte:
http://www.riototal.com.br/coojornal/contosbrasileiros
Extraído de: A Comédia.
São Paulo, n.0 28 e 29, 4 e 5 abr. 1881.
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Escritor, clássico da Literatura Brasileira
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