Reservem flores para outros rituais
* Por Eduardo Murta
Foi logo aos cinco anos que Balbino exibiu os primeiros estranhamentos àqueles
rituais de partida. É ele, menino, confiram, uniforme de escola, na ponta dos
pés, para que enquadre a cena por inteiro. A vó deitada entre os ramos de
flores, os paramentos cristãos fazendo moldura. E o silêncio sangrado só pelo
choramingo discreto de Rosali, neta como ele. Viajou os olhinhos pelo corpo.
Pelo vestido de domingo. Pelas mãos de que, sabia, sentiria saudade dias à
frente.
A mirada congelada, alguém há de puxar-lhe pela manga da camisa, percebendo
que, não o fazendo, logo estaria mergulhado num pântano de tristeza. Se deixou
arrastar para fora, ainda a tempo de ouvir: "Foi cobra". Reteve os
passos à porta e se virou para o adeus. Carregaria a imagem, vó partindo, vida
afora, porque decretaria o litígio naquele instante, o que quer que aquilo
significasse. Se comprometeria a quixotear a morte por todo o sempre.
É ninguém menos que ele, todo em branco, capa de super-herói. Já conta sete anos. E serpenteia pelos arcos do cemitério. Traz a espada em madeira à mão esquerda. Canhoto solitário no lugar. Família alguma permitia. Era senha de desassistidos, praguejavam. Balbino não empenhando um níquel de preocupação. Quando o cortejo finalmente aponta à esquina, ele enche os pulmões, faz ares de mau e esbraveja: Maldita seja!!!
É o único a notar o peso sobre o caixão de Felícia. Vislumbra um cão assentado ao tampo. Não mais que três décadas de vida. Planos tardios de seguir com o próximo circo que aportasse na cidade. Ilusionista que driblava até as sombras. Veio o mal súbito. As pernas fraquejando, a memória dissolvendo aos impulsos mais banais. As palavras mais simples lhe faltando essenciais. Respiração trôpega, ar rarefeito.
Balbino não daria uma vírgula de perdão a tudo aquilo. Gente como Felícia havia
sido feita para reinar por tempos a se perder de vista. Mulher bendita que dava
rumo e prumo à tropa humilde dos grotões. Cedia pão, coberta e entendimento a
quem batesse a sua casa. O avesso do patriarca dos Orleans. Agiota, ladrão de
gado, mentiroso. A fórceps, primeiro homem das menininhas humildes do povoado.
Beirando os 90, lúcido, mandão, asqueroso.
Os sinais contraditórios faziam Balbino se enxergar de modo diverso. Não sabia se feito símbolo de resistência ou pára-raios. Já havia convivido com catapora, tuberculose, sarampo, coqueluche, tifo, verminose, cobreiro, escorbuto, anemia... Se recorda dos irmãos transtornados, dos pais se perguntando sobre a roupa ideal para o enterro. Toureara todas as adversidades. E adotara, desde a recuperação, lida como um milagre, o brasão da caveira com um X cruzando a face.
E seus códigos, em pouco tempo, foram sendo conhecidos região afora. O hábito
de urinar em torno das covas, como marcasse território. E, à meia-noite da
Sexta-feira Santa, o bundalelê encenado diante da coleção de sepulturas. Preso
não era, porque, no fundo, dele nutriam dó e medo. Mais medo que dó. Mas
haveriam de se orgulhar daquele menino que crescera num tempo em que a
escravidão caminhava para se tornar um defunto. Que mais tarde se uniria aos
mutirões contra a gripe espanhola, ajudaria a salvar feridos nos campos da
Segunda Guerra, a amparar leprosos deserdados e as primeiras legiões que a Aids
varreria do mapa.
Havia arranhado o rosto da morte em duelos memoráveis. Foi empunhando a
bandeira até chegar aqui. Mirem, é ele, dividindo a cena com o canto de
aniversário junto à parentada. As velas sinalizando 133 anos. E gente da
família que o tinha como mera lenda veio de longe para celebrar. Mais: tocá-lo,
a confirmar se era mesmo real. Os presentes, pediu antecipadamente, que
convertessem em doações para hospitais de doentes terminais. Barrou flores à
entrada, porque lhe impunham sentimentos de outra ordem. Invocou a presença da
tataraneta. Três meses. Esparramou-lhe a fatia de bolo à palma diminuta das
mãos. E ofereceu as dele. Que se esbaldassem, porque era em provocante
celebração à vida.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias.
Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas
selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”,
lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o
livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de
Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi
um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
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