* Por Mara Narciso
O carro teve sua velocidade reduzida e uma mão jogou algo grande pela janela. Era um saco de estopa mal amarrado pela boca. Saindo do seu trabalho no almoxarifado, e entrando no anel rodoviário, José, operador de máquinas deslocado da sua função, viu que o saco parecia pesado na queda, e algo se mexia dentro dele. O pacote estava no meio da estrada, à mercê do trânsito e o outro veículo se afastava. Estacionando no acostamento, o operador correu para ver o que era. Curioso, desfazendo o nó mal dado, abriu a boca do saco e deparou-se com quatro olhões. Eram duas cachorrinhas vira-latas, marrons, ainda bebês, com algum parentesco com a raça basset. Mostravam-se medrosas, porém inteiras. Decidido a salvá-las, o homem foi escolhendo uma delas para si, a menor, e a outra, ofertou a um colega, que a recebeu de boa vontade.
Levou a agora sua cachorrinha para casa, dando-lhe algo para comer e beber, um lar e um nome: Fafá. Olhando a bichinha comer, percebia o coração açoitado por dois sentimentos antagônicos: o amor que a imagem desprotegida de Fafá já lhe despertava e uma raiva daquele que a tinha deixado na estrada para ser atropelada. Sentia-se bem em poder acolhê-la. Aquele gesto de adoção o reconfortava em sua solidão de único morador daquela casa.
Amainada a fome e a sede, com olhos medrosos e incertos, a cachorrinha buscava apoio e um cantinho para si. Debaixo do tanque de lavar roupas, José, sentindo pena do animal, ajeitou uma caminha fofa para ela. No outro dia deu-lhe banho, vacinas e vermífugos, além de providenciar ração canina. A cachorrinha adotada foi aos poucos se sentindo confiante, e com o passar dos dias já corria pelo quintal.
Fafá recebia carinho e atenção suficientes, mesmo com as limitações de tempo daquele homem tão ocupado. José e seu incorrigível bom coração, contou sua aventura e gesto nobre a uma amiga. Quando esta o visitou, mostrou a sua cachorrinha. Emocionava-se e também despertava simpatia na amiga ao narrar o acontecido e o modo como a encontrou. O achado tinha sido há um mês. A mulher notou logo que ela e a cachorrinha tinham algo em comum: a carência.
Desconfiada, Fafá chegou de mansinho, olhando de um jeito triste, porém sem pedir nada. Foi quando, surpresa recebeu carinho. O afago também foi cauteloso, sem intimidade ao fazer o gesto. Com o passar dos minutos as duas foram ficando mais a vontade. Fafá não chegou a abanar o rabo, coisa que mostra alegria entre os cães, mas num segundo momento já retribuía as adulações, lambendo as mãos que a acariciavam.
Morando na casa há quatro meses, Fafá parece hoje ter meio ano de vida. Ainda é criança, por assim dizer, e faz suas travessuras. Entrou na sala sem ser vista, quando José dormia, e destruiu irremediavelmente um porta-CDs. De outra vez ganhou de presente uma caminha nova, feita de matelassê, que é pura maciez, e a destruiu na primeira noite. Rasgou tudo com os dentes. Pensam que José se aborreceu? Não. Explicou para ela, com calma, que não se devia fazer isso. Pena que tenha ficado com seu cantinho desmantelado. Logo receberá outro mimo, e mais madura, poderá entender que não se devem afiar os dentes nos panos. Principalmente caminhas. Será que ela conseguirá controlar o nervosismo de outra maneira? Quem sabe um passeio pela rua, que ainda não conhece, poderá acalmá-la?
A amiga de José, que nunca teve cachorro (ele já criou alguns grandes e ferozes), e não tem nenhum xodó por cães, foi seduzida pela simpatia e manhas de Fafá. Ela não late, não faz festa, não é pidona. Fala com os olhos: eu estou aqui, eu gosto de vocês, eu sou agradecida pelo meu novo lar.
Animais sabem quando são amados. E apenas por ser como ela é, vai recebendo adulos e colo, retribuindo com lambidas e chamegos. Sensibiliza com seu jeito cativante. E apenas Fafá é assim.
*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade” – blog http://www.teclai.com.br/
Só quem tem e ama seu cachorro sabe compreender esse texto. Nosso errante e defeituoso mundinho deveria ser regido pelos cães, esses seres tão superiores a nós. Belo texto, Mara.
ResponderExcluirEu nunca tive um cachorro. Está passando da hora de ter essa experiência única. Respeitar, cuidar e mais do que isso, aprender com os cães. Falou tudo Marcelo. Obrigada por comentar.
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