sábado, 7 de janeiro de 2012







O alcaide de Iquique

* Por Urda Alice Klueger


(Excertos do livro “Viagem ao Umbigo do Mundo, publicado em 2006)

Iquique tem uma dramática história, se olharmos para o passado. Abrigo de antigos pescadores, sofreu muitos terremotos e muitas vezes se incendiou. Houve mais tragédias, porém. Encontrei diversas fontes discordantes no número de mortos nos acontecimentos de Iquique em 1907, e então tive que optar por uma que traz um número que eu diria “médio” de pessoas massacradas. Vejamos: “A cantata de Santa Maria de Iquique, de Luiz Advis, fora apresentada pela primeira vez no II Festival da Nova Canção Chilena de 1970. (...) ela relatava a história do massacre de 3.000 mineiros de nitrato, com suas esposas e filhos, durante greve, em Iquique, em 1907.”[1] Aclarando um pouco melhor a informação atrás, nessa greve de 1907 a situação tinha-se tornado tão insustentável que os mineiros e suas famílias foram se abrigar todos numa escola – e a escola foi cercada, e lá dentro dela, foram todos massacrados sem a menor piedade
Hoje a gente olha para aquela cidade bonita e quase não consegue crer que tal coisa tenha acontecido lá.
Dois dos nossos companheiros,(...), tinham ligações políticas lá, isto é, eram amigos do alcaide, quer dizer, o prefeito, e queriam lhe fazer uma visita de cortesia, na manhã seguinte. Fomos todos juntos, em grande estardalhaço, até a residência do mesmo, que estava em plena campanha política pela reeleição. Essa visita merece um capítulo especial deste relato e algumas explicações interessantes.
O alcaide de Iquique teria lá seus sessenta e tantos anos, e era um político profissional com todas as características. Recebeu-nos diante da sua casa, fez-nos ficar em semi-círculo, postou-se no lugar mais privilegiado para que o víssemos, e começou seu discurso.
O cara era um pinochesão[2] de marca maior; estava a tentar, agora, a enésima reeleição consecutiva – era alcaide de Iquique fazia 24 anos! Fico pensando, até hoje, o que aquela liberdade que tinha de agir, quase como se fosse dono de Iquique, não lhe permitira praticar nos esconsos da longa ditadura daquele país. Era evidente a sua autoridade até conosco, viajeiros ocasionais, passantes por acaso na cidade da qual ele era como que dono.
Depois que nos colocou na formação que queria, começou seu discurso mais ou menos assim:
- “Quando eu era jovem, eu olhei para o mapa e entendi por que os Estados Unidos eram tão poderosos: é que eles tinham navegação tanto no Atlântico quanto no Pacífico ..." -”e ele teceu umas tantas loas aos Estados Unidos, e eu fiquei olhando aquela figura da qual não esperava mais do que aquilo, pensando em quando ele acabaria, quando o discurso dele tomou rumos totalmente inesperados.
“Durante a minha vida, eu viajei mais de cinqüenta vezes ao Brasil”- Vou tentar resumir mais resumidinho o discurso do alcaide de Iquique. Ele viajara para o Brasil por lá e por cá, quer dizer, pelas diversas possíveis rotas a serem feitas desde Iquique, isto é, via Argentina, ou via Paraguai e Bolívia, e achara todas muito longas, fora de mão, complicadas, difíceis. Tal fato lhe despertara a vontade de achar uma rota mais fácil e curta para o Brasil, e para tanto muito andara pesquisando durante os últimos 40 anos, através de matos, desertos, e da imensa Cordilheira dos Andes. Segundo ele, conseguira achar a tal rota – precisava agora de apoio do Brasil para que fosse aberta a tal estrada, que de Iquique, no Oceano Pacífico, até o Centro Oeste brasileiro, teria apenas 1.300 quilômetros, com direito a dois túneis, etc. Através do Pacífico, a nossa soja e outros produtos levariam apenas 24 dias para chegarem à China, ao contrário dos 32 dias que levavam desde Paranaguá, contornando o Cabo da Boa Esperança, o que, em termos de transporte e custo, representava grande economia para um país. Aí os meus amigos fizeram a sacanagem costumeira:
- Señor, tenemos conosco una periodista! – eu não era jornalista coisa nenhuma, mas meus companheiros viviam me apresentando como tal a cada vez que surgia um problema, como guardas de estrada começarem a pedir muitos documentos ou a qualquer coisa inconveniente. Costumava funcionar, as coisas se resolviam mais facilmente se havia uma periodista a bordo - só que aquela notícia deixou o alcaide de Iquique doido de alegria. Identificou-me no semicírculo, veio até mim com o maior sorriso, já anunciando:
- Lula! Você vai levar o meu projeto até Lula! – e os meus companheiros ali sérios, como se eu fosse mesmo alguma famosa jornalista com trânsito livre no palácio do Planalto e capacidade de barganha para pôr em prática o projeto do prefeito de Iquique.
- Esse mandou vir o projeto que tinha feito. Era um papel enorme, onde estava cuidadosamente impresso imenso mapa com a famosa nova rota, dobrado e redobrado muitas vezes, e pôs-se a abri-lo. Penso que, inteiramente desdobrado, o mapa ocuparia uma área enorme, como uma sala média, diria. Eu cá não duvido das boas intenções do alcaide de Iquique naquele assunto, nem duvido que ele tenha mesmo descoberto rota mais viável para do Brasil chegar-se ao Chile – mas o meu novo cargo de periodista me dava responsabilidades inesperadas, como a de voltar ali depois do encontro em Cusco, e fazer com ele, de jipe, através de tenebrosos caminhos, a rota até o Brasil. Os safados dos meus companheiros davam a maior força, prometiam que voltariam comigo, etc. Então o alcaide lembrou-se de avisar à sua esposa para chamar a imprensa.
O cara devia mesmo mandar na cidade, pois num instante estavam ali rádio, jornal e televisão, e ele se pavoneava como candidato profissional, pinochezão de cabo a rabo, e então não deixei por menos: como naquela manhã fazia um certo friozinho, eu havia vestido uma jaqueta um tanto leve que tenho, e que traz escrito, em diversos pontos, e em letras bem grandes, a palavra “Cuba”. Lembro de quando usei pela primeira vez tal jaqueta, alguns dias antes, e apareci para jantar com os colegas de caminho, diversos deles olharam-me bastante perplexos, e limparam a garganta antes de perguntar:
Cuba, é, dona Urda?
Eu tinha encarado.
- Por que? Se fosse Nova Iorque não tinha problema, né?
Aí ninguém mais tinha dito nada da minha jaqueta, e eu a usava de acordo com a temperatura.
Pois naquela manhã dei-me conta que estava justamente com aquela jaqueta, e foi a imprensa chegar e eu me colocar de braço dado com o alcaide, tivesse ele as intenções que tivesse. Tanto nas fotografias quanto na televisão ele saiu de braço dado com uma mulher que usava uma jaqueta com a palavra “Cuba” impressa em grandes letras, em plena campanha para reeleição. Acho que ele estava tão animado com a periodista que levaria seu projeto até Lula que nem se deu conta do detalhe. Soube depois que ele se reelegeu. Fico pensando se o projeto dele é viável ou não. Gostaria de um dia saber.

• Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR.

Um comentário:

  1. Sempre com graça e leveza, vamos lendo e seguindo a sua viagem, Urda. Em todas fases há um quê de esquerdista e de rebeldia, além de doses extras de sentimentos.

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