

Uma flauta a caminho da luz
* Por Kelli Vasconcelos
Em meio à leitura, o metrô sacoleja as páginas do livro aberto, meio amassado por morar na bolsa recheada de itens de mulher. Um refúgio para quem tem apenas os vidros molhados pela chuva fina para se distrair.
Entre os vales afegãos e a peregrinação do personagem daquela obra em busca da fé, um som de flauta ecoa pelo minúsculo espaço lotado de gente. Não consigo observar de onde vem esse som. Pensei comigo que fosse algum teimoso toque de celular ou mesmo que fossem os devaneios da leitura. Afinal, quando a história intriga, dá para senti-la, seja para o bem, seja para o mal.
Não era pensamento distante, pois vi a realidade diante dos olhos. Não fechei os olhos para um cego que dedilhava uma flauta de plástico azul ressecado pelo sol. “Peço a ajuda de vocês porque não tenho condições e oportunidade de trabalhar. É muito difícil viver sem enxergar a luz”, dizia.
Aquilo tocou o coração de alguns. Outros ainda estavam entretidos com outras palavras e sons, ouvindo radinhos, músicas nos celulares, lendo o jornal distribuído de graça na estação.
O trem dava solavancos, e o senhor se orientava pela bengala e um sino pendurado no pescoço.
Quando coloquei algumas moedas no balde, também azulado e pendurado no pescoço, vi que o homem carregava uma medalha que tinha duas mãos juntas, como súplicas por estar ali, indefeso. Súplicas por não ter condições, por ser daquele jeito.
Sacolejava vez ou outra o balde para verificar o peso das moedas, se mais pesadas ou leves demais. Ou mesmo se um hipócrita entre tantos, em vez de pôr, retirasse as poucas cédulas para sobreviver.
De “bis”, assoprou com dificuldade uma canção das paradas de sucesso, para agradecer o público que não consegue ver – ou que não quer ser visto.
O trem parou na estação, abriu as portas e não se viu aquele cego no vagão. Como se a flauta tivesse poderes divinos, abrisse as portas para as soluções do mundo.
E lá foi ele, tateando despercebido no meio da multidão, sumindo como o pedaço de papel jogado pela janela. Amassado e encharcado pela chuva que não dá trégua, mesmo nos dias de calor – ira divina para nos fazer enxergar as mazelas do mundo?
Não sei. Penso que aquela pequena flauta e a medalha das mãos em prece são amuletos de luz em meio à escuridão de corações duros. Ressentidos. Mais súplicas abafadas pelas aparências. Mais desejos enforcados pelas vaidades. Mais cegueira daqueles que não querem ver a realidade que os persegue.
* Kelli Vasconcelos é jornalista nativa de São Paulo - Capital. Já atuou em rádio, assessoria de imprensa, editora e revistas. Faz trabalhos como freelancer e está sempre na incansável e apaixonante luta por oportunidades.
* Por Kelli Vasconcelos
Em meio à leitura, o metrô sacoleja as páginas do livro aberto, meio amassado por morar na bolsa recheada de itens de mulher. Um refúgio para quem tem apenas os vidros molhados pela chuva fina para se distrair.
Entre os vales afegãos e a peregrinação do personagem daquela obra em busca da fé, um som de flauta ecoa pelo minúsculo espaço lotado de gente. Não consigo observar de onde vem esse som. Pensei comigo que fosse algum teimoso toque de celular ou mesmo que fossem os devaneios da leitura. Afinal, quando a história intriga, dá para senti-la, seja para o bem, seja para o mal.
Não era pensamento distante, pois vi a realidade diante dos olhos. Não fechei os olhos para um cego que dedilhava uma flauta de plástico azul ressecado pelo sol. “Peço a ajuda de vocês porque não tenho condições e oportunidade de trabalhar. É muito difícil viver sem enxergar a luz”, dizia.
Aquilo tocou o coração de alguns. Outros ainda estavam entretidos com outras palavras e sons, ouvindo radinhos, músicas nos celulares, lendo o jornal distribuído de graça na estação.
O trem dava solavancos, e o senhor se orientava pela bengala e um sino pendurado no pescoço.
Quando coloquei algumas moedas no balde, também azulado e pendurado no pescoço, vi que o homem carregava uma medalha que tinha duas mãos juntas, como súplicas por estar ali, indefeso. Súplicas por não ter condições, por ser daquele jeito.
Sacolejava vez ou outra o balde para verificar o peso das moedas, se mais pesadas ou leves demais. Ou mesmo se um hipócrita entre tantos, em vez de pôr, retirasse as poucas cédulas para sobreviver.
De “bis”, assoprou com dificuldade uma canção das paradas de sucesso, para agradecer o público que não consegue ver – ou que não quer ser visto.
O trem parou na estação, abriu as portas e não se viu aquele cego no vagão. Como se a flauta tivesse poderes divinos, abrisse as portas para as soluções do mundo.
E lá foi ele, tateando despercebido no meio da multidão, sumindo como o pedaço de papel jogado pela janela. Amassado e encharcado pela chuva que não dá trégua, mesmo nos dias de calor – ira divina para nos fazer enxergar as mazelas do mundo?
Não sei. Penso que aquela pequena flauta e a medalha das mãos em prece são amuletos de luz em meio à escuridão de corações duros. Ressentidos. Mais súplicas abafadas pelas aparências. Mais desejos enforcados pelas vaidades. Mais cegueira daqueles que não querem ver a realidade que os persegue.
* Kelli Vasconcelos é jornalista nativa de São Paulo - Capital. Já atuou em rádio, assessoria de imprensa, editora e revistas. Faz trabalhos como freelancer e está sempre na incansável e apaixonante luta por oportunidades.
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