sábado, 12 de fevereiro de 2011




Abya-Ayalla – Outubro

* Por Urda Alice Klueger


Sempre soube, desde pequena, que as coisas tinham coração, tinham sentimentos, tinham vida, sofriam e eram felizes tanto quanto os seres vivos. Na minha infância, por exemplo, se acontecesse de eu dar uma topada numa pedra, por mais que o meu pé estivesse doendo, eu ficava a imaginar o quanto a pedra se machucara também, e pedia perdão a ela, e assim por diante. Árvores, plantas, por exemplo, eram coisas vivas, e então deveriam sentir e sofrer ainda mais que as outras coisas, e então eu evitava de arrancar qualquer folhinha, qualquer galhinho, e quando me consentia tirar pedacinhos de folhas dos pés de tangerina, para ficar a cheirá-los, a esmagá-los na mão e friccioná-los no corpo por causa do seu perfume que para mim é inigualável, ficava muito apiedada do que sentira o pé de tangerina, e conversava com ele, explicava-lhe dos meus sentimentos e do meu amor por seu cheiro, e lhe pedia desculpas.
Tive que crescer mais um pouco, porém, para entender que não eram só as coisas como pedras, formigas e pés de tangerina que tinham alma e sentimentos: um dia viajei pela primeira vez para a encantada cidade de Salvador, que conhecia quase que profundamente através de um escritor que dedicara sua vida a ela, um baiano chamado Jorge Amado, mas que jamais imaginara que fosse uma cidade com alma. E ela estava lá, a alma de Salvador, batendo fortemente dentro de um coração que se situava bem sob a estátua de Castro Alves, na praça do mesmo nome, sobranceira ao Mar de Iemanjá! Foi uma surpreendente surpresa descobrir aquela coisa, e eu não queria mais sair daquela praça, tentando auscultar as poderosas batidas que vinham de sob ela, entendendo perfeitamente, então, que também as cidades possuem coração e sentimentos!
Descobri o coração de Salvador em 1988; descobri o coração de Abya-Ayalla cinco anos depois, quando me aventurei por países nunca dantes navegados por mim, e fui bater em Sacsayuhaman.
Alguém há de me perguntar o que poderá ser Abya-Ayalla, e então explico: é o nome que muita gente quer que tenha este continente aonde vivemos. Alguém pode até rir, achando que é bobagem, mas esse é um assunto que tem sido seriamente debatido em Fóruns Internacionais, por sérias pessoas que pensam muito seriamente sobre tal possibilidade, e eu já tenho visto uma porção de gente chamando de Abya-Ayalla a este continente que faz uns 500 anos foi batizado de América, por causa de um navegador estrangeiro chamado Américo Vespúcio. Além de saber que era um navegador, e estrangeiro, o que você sabe sobre Américo Vespúcio? Aposto que nada – o que pode representar o nome de América tirado de um navegador que não teve a mínima importância para nós? Pois é, e o nome está aí, durando quase 500 anos.
Abya-Ayalla, no entanto, tem uma significação poderosa: numa das antigas línguas existentes na América Central, ele é traduzido como “Mãe Terra”, ou seja, a mãe de todos nós.
E a Mãe Terra tem coração, tem alma, tem sentimentos?
Tem, e eu descobri tal coisa em 1993, quando fui pela primeira vez a Sacsayuhaman, aquela antiga fortaleza Inca, nas cercanias da cidade de Cusco, Peru, onde, no século XVI, houve a batalha final entre o povo Inca e os soldados do invasor espanhol Pizarro, o que alterou toda a História do nosso continente. É bem ali o coração da América; é ali que gente pode auscultar o solo e senti-lo bater, angustiado e arfante, na mágoa pela destruição dos seus amplos tempos de glória e pelas injustiças do presente. Nunca esquecerei a emoção de descobrir tal coisa, de entender que o nosso continente tem uma alma como as mães têm, já que Abya-Ayalla ele é, mesmo.
Passou-se bastante tempo; foi só no outro outubro, faz agora 15 meses, que eu voltei ao coração deste meu continente muito amado. Eu tinha muita coisa a contar-lhe, mas uma era a mais linda de todas.
Despistei todos os turistas de todos os lados do mundo que por lá andavam, e sorrateiramente me esgueirei até os píncaros daquela fortaleza que parece chorar, tamanho o peso das suas lembranças, e lá, no seu ponto mais alto, sentindo um enorme e poderoso coração pulsar sob mim, eu gritei – gritei bem alto, o mais alto que podia, gritei para o continente inteiro ouvir – o quanto eu amo o meu amor!
Abya-Ayalla entendeu, soube na hora. Seu poderoso coração sofrido de repente deixou de arfar, e disparou de alegria como disparam os corações das mães!
Obrigada pela solidariedade, Mãe Terra! O grande amor não tem como deixar indiferentes sequer o coração dos continentes!


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR

Um comentário:

  1. Fazendo doutorado em Geografia e tendo a sensibilidade aflorada como tem, Urda, não é de se admirar que sinta o coração da terra. E ainda colocou o navegador no seu devido lugar.

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